segunda-feira, 30 de abril de 2012
OCEANO
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spanishdancerdivers.com |
"Quando olhamos para o universo e identificamos os
múltiplos acidentes da física e da astronomia que trabalharam em nosso
proveito, tudo parece ter-se passado como se o universo devesse, de alguma
maneira, saber que havíamos de aparecer."
(Freeman Dyson, citado por Hervé Barreau)
Quando opomos a esta "intuição" a teoria do
acaso e da interacção, segundo leis hipotéticas, das forças da natureza,
não estamos a ser menos "antropocêntricos", mas, sem dúvida,
afastamos, em primeiro lugar, a explicação pela ideia
de Deus.
Ao fazê-lo, tornamo-nos até mais centrados na ideia do
homem, numa certa ideia do homem que é a premissa dum mundo sem transcendência,
de acordo com uma visão optimista e (sabemos hoje) ingénua da ciência.
A ilusão retrospectiva que influencia aquela intuição é a
do comum fatalismo. O mundo parece ter-se desenvolvido segundo uma finalidade
que é a da única parte interessada.
O universo é como um vasto oceano em que aprendemos a
manobrar o leme. Mas nunca nos bastaram os instrumentos. Na sua própria
concepção, os instrumentos remetem-nos para a esfera dos fins.
O que fazer, pois, com o pensamento?
domingo, 29 de abril de 2012
AGARRAR UM PESO
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skyscanner.net |
"O homem científico está limitado nos seus
sentimentos, o homem prático ainda mais. É tão evidente como ter as pernas bem
plantadas quando se quer agarrar um objecto com os braços."
"O Homem Sem Qualidades"
(Robert Musil)
O ideal da ciência é a objectividade, e só isso explica
por que os sentimentos devem ficar de fora. A mente que analisa gostaria de não
ser afectada pelas "razões" do coração para poder partilhar alguma
certeza sobre o mundo. Embora a imaginação e a intuição tenham um grande papel
na criatividade, tornam-se pouco recomendáveis quando é preciso ser
"objectivo" (e mesmo "inter-subjectivo").
Somos sujeitos a vários regimes, como se, em nós, se
sucedessem, aleatoriamente, outras tantas formas de governo. O modelo destas
elucubrações é, evidentemente, "A República" de Platão, em que muitos
vêem, como Simone Weil, um tratado da alma, mais do que um tratado político (
se assim fosse, a crítica de Popper, por exemplo, teria errado o seu alvo). E
não há nenhuma forma de governo em que não haja divisão e especialização.
O sentimento é o contrário disso e é mais justo em
relação ao nosso próprio corpo e às nossas necessidades vitais.
O homem prático falha nos dois mundos. Para ser eficiente
limita-se na forma como sente e nos seus pensamentos. A sua visão é curta e o
seu mundo reduzido, com o que pode alcançar uma fácil beatitude.
A ideia de ganhar base de sustentação para receber um peso
nos braços é feliz. A ciência reclama uma concentração de forças (e um
correspondente abandono de outras vivências), tal como o prático que, por não
querer "perder tempo", se reduz a uma única dimensão.
sábado, 28 de abril de 2012
O BURACO METAFÍSICO
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theatertreffen-blog.de |
"Ele não conseguia deixar de pensar no processo.
Muitas vezes tinha já considerado se não seria uma boa ideia escrever a sua
defesa e entregá-la ao tribunal. Conteria uma breve descrição da sua vida e a explicação
de ter agido como agiu em qualquer acontecimento que de algum modo lhe
parecesse importante, quer ele achasse agora que tinha agido bem ou mal, e as
suas razões em cada caso. Não havia dúvida nenhuma sobre as vantagens duma
defesa escrita desse género sobre confiar no advogado, o qual, de qualquer
modo, tinha as suas limitações."
"O Processo" (Franz Kafka)
O mínimo que se pode dizer é que K. não compreende o
processo que lhe instauraram. Não compreende quem o acusa, nem quem o vai
julgar. Assim, dispensando o advogado que lhe foi apresentado pelo tio, e que
lhe parece mais uma peça do "puzzle", pensa em justificar-se sem
saber qual é o seu crime. É óbvio que, neste caso, a sua opinião sobre o bem e
o mal não tem qualquer valor. Há um outro critério, talvez uma outra moral, que
ele em absoluto desconhece, mas que se tornou para ele uma questão de vida e de morte.
Esse princípio desconhecido é do género das leis que é suposto conhecermos e
cuja ignorância não podemos invocar.
A atitude de K., na falta de qualquer "chave",
é mostrar toda a sua vida e todos os seus motivos para exame, como se o facto
de não esconder nada pudesse de algum modo beneficiá-lo.
Depois dum primeiro sentimento de revolta, K. rendeu-se
ao absurdo da situação. O seu caso é ainda pior do que o dos "réus" nos
famosos processos de Moscovo dos anos trinta do século passado, os quais, confirmando a mentira oficial, ao menos
ganharam um lugar no paraíso comunista.
O buraco onde ele vai cair, esfaqueado por dois polícias
irresponsáveis e sem rosto, como a Lei que o condenou, não tem nome, nem abre
para nenhum firmamento.
O texto fala em vergonha e em morrer como um cão, mas é
apenas o sentimento duma entidade microscópica, que não significa nada.
quinta-feira, 26 de abril de 2012
O ABCESSO
"Revelar-se-ia então como um abcesso que, no corpo
doente, se julgasse autorizado a falar em nome desse corpo."
"Sade, mon prochain" (Pierre Klossowski)
Mas donde vem a legitimidade de falar em nome do outro,
em primeiro lugar? De todo o poder ser uma tarefa entre outras, de ser uma
especialização e um mal necessário?
Por que é que o "abcesso" não deverá
reivindicá-lo? Um relógio avariado não se regula pelas leis do mecanismo que
funciona, já alguém disse.
De facto, é o que vemos. A sociedade doente
"segrega" o órgão que a há-de manter nesse estado...como o
capitalismo (ainda quer dizer alguma coisa a palavra, não estaremos já no reino
da simulação, como dizia Baudrillard?) que, de crise em crise, gere a sua
malignidade crónica.
Na crise europeia, os médicos, chamados à cabeceira do
doente, saíram da pústula que infectou
todo o sistema.
quarta-feira, 25 de abril de 2012
"PUXAR A BRASA"
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dp.lege.lobbiyst |
"O
termo de 'lobby' é associado em França a uma representação negativa. O 'lobby'
falsearia a democracia. Esta ideia é sem dúvida reforçada por uma campanha
presidencial americana na qual estão em condições de mobilizar dezenas de
milhões de dólares para pesar sobre o escrutínio de Novembro de 2012. A controvérsia é viva nos Estados Unidos sobre o papel e o poder dos 'lobbies',
ou melhor de certos de entre eles, mas a sua existência não é posta em causa.
Com efeito, a ancoragem dos 'lobbies' nas práticas da democracia americana é
contemporânea da sua Constituição. A primeira emenda proibe o voto pelo
Congresso de leis restringindo a liberdade de expressão e o direito dos
cidadãos de se reunirem pacificamente."
"Diktat des "corps intermédiaires"
(Clotilde Druelle-Korn, "Le Monde" de 19/3/12)
(Clotilde Druelle-Korn, "Le Monde" de 19/3/12)
Os interesses, desde os da grande finança aos das empresas dos vários sectores, das confederações
sindicais e dos consumidores, podem, através da prática lobbista,
influenciar o poder entre eleições. É sem dúvida um sinal de dinamismo da
"sociedade civil", e talvez os 'lobbies' funcionem em muitos casos como bons
conselheiros do governo. Pareceria até que esse tipo de influência só peca por ser
minoritário e redundar em mais força para os mais fortes.
Nos EUA, essa assimetria não parece prejudicar a fé do cidadão comum na democracia. Talvez porque o regime signifique, para o cidadão-crente, mais uma esperança nas famosas oportunidades do que na igualdade de facto dos direitos. Os americanos nunca se deixaram seduzir pela Deusa da Razão, em qualquer altar iluminista como os seguidores do "Incorruptível", e preferem que Deus se torne no Grande Fiador do seu dinheiro. Ora, a organização dos 'lobbies' é apenas mais uma escada para agarrar as mais apetecidas oportunidades e, por isso, é congénita ao sistema.
Na Europa (pelo menos de antes da "Doutrina do Choque", com que o programa neo-liberal é imposto graças à oportunidade aberta pela crise provocada pela sua ideologia), os 'lobbies' gozam dum privilégio que não pode ser extensível à maioria, porque a maioria não se organiza, a não ser como burocracia do Estado ou dum partido, e a memória da URSS é o melhor preventivo dessa experiência.
O resultado das eleições "de quatro em quatro anos" começa logo a ser desvirtuado no primeiro dia de governo pelos que sabem e podem organizar-se. Se essa "influência" fosse mais visível, a democracia, tal como a conhecemos, não poderia sustentar-se.
Nos EUA, essa assimetria não parece prejudicar a fé do cidadão comum na democracia. Talvez porque o regime signifique, para o cidadão-crente, mais uma esperança nas famosas oportunidades do que na igualdade de facto dos direitos. Os americanos nunca se deixaram seduzir pela Deusa da Razão, em qualquer altar iluminista como os seguidores do "Incorruptível", e preferem que Deus se torne no Grande Fiador do seu dinheiro. Ora, a organização dos 'lobbies' é apenas mais uma escada para agarrar as mais apetecidas oportunidades e, por isso, é congénita ao sistema.
Na Europa (pelo menos de antes da "Doutrina do Choque", com que o programa neo-liberal é imposto graças à oportunidade aberta pela crise provocada pela sua ideologia), os 'lobbies' gozam dum privilégio que não pode ser extensível à maioria, porque a maioria não se organiza, a não ser como burocracia do Estado ou dum partido, e a memória da URSS é o melhor preventivo dessa experiência.
O resultado das eleições "de quatro em quatro anos" começa logo a ser desvirtuado no primeiro dia de governo pelos que sabem e podem organizar-se. Se essa "influência" fosse mais visível, a democracia, tal como a conhecemos, não poderia sustentar-se.
"Puxar a brasa à sua sardinha" pode ser legítimo, mas é óbvio que não há brasa para todas as sardinhas. Para o grande número, a democracia deve, por isso, converter-se em "oportunidades de brasa".
terça-feira, 24 de abril de 2012
O INCOMPREENSÍVEL
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Jack, the Ripper (wdfyfe.wordpress.com) |
"(...) compreender é também compreender o que se
passa com o incompreensível."
(Edgar Morin, citado por Jean-Louis Le Moigne)
O que significa isto, para além do socrático saber que
não sei?
O "incompreensível" pode, é verdade, designar o
que 'nunca' poderemos saber, como, por exemplo, o que se passou no princípio de
tudo (se quisermos seguir uma ordem). É também evidente que, na história do
homem, por isso muito aquém da metafísica, abundam os chamados mistérios, ou
casos insolúveis.
Penso que Morin tem em mente os problemas da complexidade
social ou "simplesmente" física, mais do que os da chamada
metafísica. Mas é provável que o tempo, por exemplo, torne um caso relativamente simples, como o
do célebre Jack, o Estripador, num problema insolúvel e...complexo, se tivermos
em conta as redes de interpretação, umas sobre as outras, que envolvem a
descrição dos factos.
É claro que a insolubilidade não é o mesmo que a
transcendência, e saber que se perdeu uma chave, talvez para sempre, é
realmente compreender a situação.
Outra coisa é reconhecer que para lá duma certa
complexidade, os problemas são quase-transcendentes. O optimismo de alguns dos
participantes do colóquio de Cerisy de 2005, em que esteve Morin, é muito
estimulante, mas temo que seja infundado.
segunda-feira, 23 de abril de 2012
HERESIA
"Heresia, derivada do Grego 'airesis': ir pelo seu
próprio caminho."
(Karen Armstrong, "The case for God")
O mais popular dos poemas de José Régio, "Cântico
Negro", professa, nesse sentido, a vontade herética. E não há
individualista que se preze que não diga que "não vai por aí".
A heresia tornou-se, numa cultura individualista como a
nossa, na própria 'doxa', na opinião dominante.
Mas este exemplo revela também o grau de descentralização
do poder a que chegámos. Não devemos restringir esse processo à organização
administrativa do Estado. De facto, já não precisamos todos de crer no mesmo
Deus, ou no mesmo ídolo, e a tutela da Igreja ou do Partido, em muitos lugares
da terra, é coisa do passado. Heresia ou dissidência são o mesmo sintoma dum
poder que não se arrisca a confiar na liberdade da consciência religiosa ou
cívica.
Mas, rigorosamente, não se trata de confiar nos
indivíduos. Trata-se de dispensar as suas decisões, porque se construiu um
sistema que assegura o funcionamento das coisas, ao mesmo tempo que transmite o
sentimento de que as decisões individuais é que contam.
Infelizmente, a homeostasia do sistema não nos evita as
crises que levam tantos à descrença. Assim, cada vez maior é o número dos que
ao lerem a inscrição à entrada que diz: "Que não entre quem não for economista.", escolhem o seu próprio caminho.
domingo, 22 de abril de 2012
O PESSIMISMO DA ACÇÃO
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brotherpeacemaker.wordpress |
"Há na acção um pessimismo grandioso em relação às
palavras."
"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)
É Diotima quem o diz, personagem que não poupa em
palavras grandiosas, nem deixa de promover acções "palavrosas", que
em nada se distinguem do imobilismo, porque nascem algumas vezes do
"sentimento" de que algo tem de acontecer, embora não se saiba
precisamente o quê. Essa necessidade é, as mais das vezes, apenas a
consequência de se ter falado de mais, por exemplo, numa presumível aliança
entre uma ideologia económica e a alma
dum povo, mais ou menos conotada com um resultado nas urnas.
A verdade é que o pessimismo da acção a impede de
"resolver" qualquer problema que seja, nomeadamente através de
soluções indesejáveis que a falta de pensamento (ou das palavras no tribunal da
consciência) torna às vezes inevitáveis.
É quase certo que os que falam de mais gostam demasiado
de se ouvir para incorrerem nas incertezas da acção, e que os que agem por
cansaço das palavras apenas acrescentam outro nó aos problemas. Esta é uma
situação típica da guerra que, como se sabe, só resolve os problemas, na medida
em que os faz esquecer em favor de outros muito mais graves.
É por isso que a acção tem de ser optimista para ter o
mínimo de sequência e merecer algum sucesso. E haverá fé sem palavras?
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