"Fyodor Pavlovitch tinha gostado toda a sua vida de
representar, de subitamente desempenhar um papel inesperado, algumas vezes sem
qualquer motivo para o fazer, e até em seu directo prejuízo, como por exemplo
neste caso. Este hábito, contudo, é característico dum grande número de
pessoas, algumas delas muito inteligentes, como não o era Fyodor
Pavlovitch."
"The Brothers Karamazov" (Dostoiewski)
Podia ler-se este romance de Dostoiewski como a história
do crime dum único ser, de tal forma os irmãos são, cada um deles,
individualmente e os outros três ao mesmo tempo.
Esse ser complexo, cheio de paradoxos, em que se debatem
a frieza intelectual de Ivan, a paixão selvagem de Dmitri, a espiritualidade
angelical de Alyosha e a quase bestialidade de Smerdyakov, o criado e filho
natural, é o verdadeiro autor do parricídio, embora só um deles fosse
responsável segundo a lei.
O filho mais velho desejava o assassínio, mas dizia-se
disposto a impedí-lo ( o que não fez, pois deixou a casa paterna no momento
crucial, "inspirado" pelo seu rompimento amoroso com Katerina
Ivanovna). Mytia é o louco furioso que disputa com o pai a mesma mulher.
Alexey, o querubim, é a própria inacção que em tudo o vê a vontade de Deus.
Quanto ao servo Grigori, o enjeitado, filho duma pobre de espírito de quem
Fyodor Pavlovitch abusou, é o desejo de todos, inconsciente ou não, sob a forma
do instinto e da crueldade natural.
O velho, bufão e corredor de saias, é o pai em que nenhum
dos filhos se revê. Os seus hábitos e a sua maneira de pensar, o seu egoísmo, a
sua própria figura, fazem dele como que a troça divina da imagem paterna.
O seu gosto por uma vida de disfarces, como se nela fosse
um actor, e o de surpreender os outros,
independentemente de qualquer finalidade ou interesse, é a melhor definição
duma irresponsabilidade a que o teórico da família confere uma extensão
metafísica. Fyodor Pavlovitch suscita a mesma revolta em Ivan que o seu Deus
ausente.
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