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“Quando
a vida se acendia, no desejo, no sofrimento, ou mesmo na reflexão, os heróis
homéricos sabiam que um deus agia neles. Suportavam-no e observavam-no, mas o
que lhes acontecia era uma surpresa, em primeiro lugar, para eles mesmos. Assim
desapossados da sua emoção, das suas vergonhas, mas também das suas glórias,
eles foram o mais circunspectos possível em atribuir-se a origem dos seus actos.
‘Para
mim tu não és a causa, só os deuses o são.’,
diz o velho Príamo vendo Helena nas Portas Ceias. Ele não conseguia odiá-la,
nem ver nela responsável por oito anos sangrentos, se bem que o corpo de Helena
fosse o simulacro mesmo da guerra que ia acabar num massacre.”
“Les noces de
Cadmos et Harmonie” (Roberto Calasso)
Num sentido, somos
mais responsáveis do que os heróis de Homero. Não podemos culpar os deuses
pelas nossas faltas. Embora tenhamos redescoberto, com a psicanálise, que
podemos obedecer a um complexo ou a um trauma psicológico de que não temos
consciência.
Ao nomearmos o
inconsciente, não estamos, na verdade, mais adiantados do que os que acreditavam
que eram Apolo ou Minerva que agia por eles. Mas pelo facto de ninguém dirigir
uma prece ao seu inconsciente, ao contrário dos que se sentiam movidos pelo
deus, somos muito mais passivos.
A nossa autonomia,
porém, depende de outros “inconscientes”, esses, talvez ainda mais
determinantes. As causas sociais e económicas que influem no destino de cada um
são por nós “suportadas e observadas” como se, de facto, não fôssemos os
senhores de nós mesmos e, em vez disso, estivéssemos ao dispor dos caprichos
dum qualquer Olimpo, habitado por abstracções, que já não são à nossa imagem e
semelhança, mas que são tão imperiosas como os deuses do paganismo.
Claro que a mitologia
nunca impediu os homens de (re)agir. Podem ter sido os deuses os verdadeiros
culpados pela Guerra de Tróia, mas Helena é o símbolo da sua causa
incompreensível e, como tal, foi amaldiçoada mesmo pelos que sabiam que se
tratava dum símbolo.
Tudo mudou e nada
mudou. Eis por que Homero não foi nem pode ser ultrapassado.
1 comentários:
Muito bom o seu texto. Creio que no que tange a obedecer o Complexo de Édipo, ou a economia, etc ... poderíamos dizer que o homem se alinha com o transcedente? Édipo não poderia ser a elaboração imaginativa do lei contra o incesto em os animais sexados? Seriam os deuses nossas transcendências?
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