“Os
seres da terra eram uma tentação: eram atraentes porque não paravam de ter
histórias e intrigas, e também porque estavam às vezes encerrados numa espécie
de perfeição obstinada, que não fazia apelo ao céu; mas eram também infiéis e
prontos a bater nas costas, a desfigurar os hermes. Desenvolvia-se neles um
sentimento que os tempos passados ignoravam: o do deus mal compreendido,
arreliado, minimizado. Era por isso que tantas vinganças e castigos se
sucediam, como outros tantos despachos expedidos por serviços cheios de trabalho.”
“Les noces de
Cadmos et Harmonie” (Roberto Calasso)
De facto, nenhuma das
“antevisões” do Paraíso é entusiasmante. A de Dante é processional e mecânica
como um realejo. Foi imaginada para entes que já nada têm de humano, porque o
corpo e os sentidos são apenas um holograma. Podemos, pois, compreender até que
ponto os homens de carne e osso eram atraentes para os deuses do Olimpo.
A perfeição obstinada
de que fala Calasso é a que todos sentimos que existe numa criança de tenra
idade ou num animal. Embora dependam do seu meio ambiente como todos nós ( e a
primeira em extremo grau), isso não parece afectar esse sentimento de perfeição
que são capazes de inspirar.
A razão para isso
talvez esteja no facto de não haver neles um sujeito, consciente do que lhe
falta. Nesse sentido, todas as coisas são perfeitas na natureza, ou fora dela (
um relógio enferrujado e que já não serve para nada, por exemplo, é ainda
perfeito, embora não como relógio). Só o pensamento traz consigo a imperfeição.
Aqueles que a sabem esconder, mostrando um corpo sem falhas e um espírito
indiviso também são atraentes.
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