segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A PERFEIÇÃO OBSTINADA






“Os seres da terra eram uma tentação: eram atraentes porque não paravam de ter histórias e intrigas, e também porque estavam às vezes encerrados numa espécie de perfeição obstinada, que não fazia apelo ao céu; mas eram também infiéis e prontos a bater nas costas, a desfigurar os hermes. Desenvolvia-se neles um sentimento que os tempos passados ignoravam: o do deus mal compreendido, arreliado, minimizado. Era por isso que tantas vinganças e castigos se sucediam, como outros tantos despachos expedidos por  serviços cheios de trabalho.”

“Les noces de Cadmos et Harmonie” (Roberto Calasso)


De facto, nenhuma das “antevisões” do Paraíso é entusiasmante. A de Dante é processional e mecânica como um realejo. Foi imaginada para entes que já nada têm de humano, porque o corpo e os sentidos são apenas um holograma. Podemos, pois, compreender até que ponto os homens de carne e osso eram atraentes para os deuses do Olimpo.  

A perfeição obstinada de que fala Calasso é a que todos sentimos que existe numa criança de tenra idade ou num animal. Embora dependam do seu meio ambiente como todos nós ( e a primeira em extremo grau), isso não parece afectar esse sentimento de perfeição que são capazes de inspirar.

A razão para isso talvez esteja no facto de não haver neles um sujeito, consciente do que lhe falta. Nesse sentido, todas as coisas são perfeitas na natureza, ou fora dela ( um relógio enferrujado e que já não serve para nada, por exemplo, é ainda perfeito, embora não como relógio). Só o pensamento traz consigo a imperfeição. Aqueles que a sabem esconder, mostrando um corpo sem falhas e um espírito indiviso também são atraentes.

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