quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A POLÍTICA DO INFERNO

S. Gregório de Nisa (330 -395)


“As ideias populares e cultas relativas a um além com recompensas e castigos eram então, por certo, tão largamente espalhadas quanto o haviam sido durante toda a antiguidade, mas a versão cristã original destas crenças, coerentemente ligada à ‘boa nova’ e à redenção do pecado, não era a ameaça dum castigo eterno e dum eterno sofrimento, mas, pelo contrário, o descensus ad inferos, a missão do Cristo no mundo subterrâneo onde tinha passado os três dias entre a sua morte e a ressurreição para suprimir o inferno, derrotar Satã e libertar as almas dos pecadores mortos, como já tinha liberto as almas dos vivos, da morte e do castigo.”


“La crise de la culture”    (Hannah Arendt)



A doutrina do Inferno teria uma origem política e não religiosa. Diz Arendt que a Igreja, tendo assumido funções temporais com a queda de Roma, incorporou, falseando-a, a doutrina de Platão dum Além dotado de castigos e recompensas destinada à “multidão” (a da imortalidade da alma só poderia ser compreendida por poucos). Primitivamente, a redenção estendia-se ao próprio Diabo e os próprios tormentos do Inferno eram considerados “tormentos da consciência”.  Mas estas doutrinas ensinadas por Orígenes e admitidas ainda por Gregório de Nisa foram declaradas heréticas.

Que a Igreja tenha levado quase dois milénios para fazer um tímido aggiornamento relativamente a esta doutrina política é indicativo da importância que dá à tradição. Não a “descontinuar” de modo nenhum é sempre preferível a uma correcção da própria história. No entanto, repor os factos quanto à origem do Inferno não significa que a doutrina oficial passasse a ser vista como uma mentira, porque não estamos a lidar aqui com a verdade abstracta mas com a crença e com uma prática secular.

É curioso que a figura de Satã ou a ideia do Mal metafísico tenham sido usadas por políticos ocidentais do nosso tempo muito mais do que pela Igreja. De facto, são ideias muito mais úteis à política e à guerra do que à verdadeira religião.

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