S. Gregório de Nisa (330 -395) |
“As
ideias populares e cultas relativas a um além com recompensas e castigos eram
então, por certo, tão largamente espalhadas quanto o haviam sido durante toda a
antiguidade, mas a versão cristã original destas crenças, coerentemente ligada
à ‘boa nova’ e à redenção do pecado, não era a ameaça dum castigo eterno e dum
eterno sofrimento, mas, pelo contrário, o descensus
ad inferos,
a missão do Cristo no mundo subterrâneo onde tinha passado os três dias entre a
sua morte e a ressurreição para suprimir o inferno, derrotar Satã e libertar as
almas dos pecadores mortos, como já tinha liberto as almas dos vivos, da morte
e do castigo.”
“La crise de la
culture” (Hannah Arendt)
A doutrina do Inferno
teria uma origem política e não religiosa. Diz Arendt que a Igreja, tendo
assumido funções temporais com a queda de Roma, incorporou, falseando-a, a
doutrina de Platão dum Além dotado de castigos e recompensas destinada à “multidão”
(a da imortalidade da alma só poderia ser compreendida por poucos).
Primitivamente, a redenção estendia-se ao próprio Diabo e os próprios tormentos
do Inferno eram considerados “tormentos da consciência”. Mas estas doutrinas ensinadas por Orígenes e
admitidas ainda por Gregório de Nisa foram declaradas heréticas.
Que a Igreja tenha
levado quase dois milénios para fazer um tímido aggiornamento
relativamente a esta doutrina política é indicativo da importância que dá à
tradição. Não a “descontinuar” de modo nenhum é sempre preferível a uma
correcção da própria história. No entanto, repor os factos quanto à origem do
Inferno não significa que a doutrina oficial passasse a ser vista como uma
mentira, porque não estamos a lidar aqui com a verdade abstracta mas com a crença
e com uma prática secular.
É curioso que a
figura de Satã ou a ideia do Mal metafísico tenham sido usadas por políticos
ocidentais do nosso tempo muito mais do que pela Igreja. De facto, são ideias
muito mais úteis à política e à guerra do que à verdadeira religião.
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