Ulisses |
“A
capacidade de controlo (sophrosýne), a habilidade no auto-domínio,
a agudeza do olhar, a sobriedade na escolha dos meios adequados para atingir o
fim: tudo isso liberta o espírito das forças e dá a ilusão que nós as
utilizamos, sem que elas nos utilizem. E é uma ilusão eficaz que se vê muitas
vezes confirmada. O olhar tornou-se indiferente e lúcido em relação a tudo,
pronto a agarrar qualquer ocasião e a tirar dela vantagem. Mas neste olhar
circular, permanece uma mancha negra, um ponto que o olhar não vê: ele mesmo. O
olhar não vê o olhar. Não se reconhece como uma força idêntica àquelas que, agora,
pretende dominar.”
“Les noces de
Cadmos et Harmonie” (Roberto Calasso)
Arjuna, no “Bhagavad Gîta”, é
o contrário do Ajax de Homero. Ele não
quer combater, apesar da guerra ser justa (segundo Krishna), pois reconhece nos
adversários uma parte de si mesmo. Não sente a força e só se decide depois de
uma longa argumentação com Krishna, movido pela ideia do dever.
“Na luta deseja vencer, mas sempre com o deus.”, diz o pai a Ajax e
este responde: “Pai, com os deuses, mesmo
um homem sem préstimo pode alcançar a vitória; quanto a mim, estou convencido
de adquirir a glória mesmo sem eles.”
Sabe-se qual foi o
castigo de Atena (“a força que ajuda o olhar a ver-se a si mesmo”- Calasso).
Ajax enlouqueceu e, julgando derrotar um exército sozinho, massacrou um rebanho
de carneiros, numa antecipação do “ingenioso hidalgo de La Mancha”, arremetendo
contra os moinhos de vento.
A força ilude-nos
sempre, porque não nos conhecemos, nem sabemos por quanto tempo nos “pertence”.
“E é aqui que se abre a diferença entre
Ulisses e um herói tão ingénuo e insolente
como Ajax. Para Ulisses, a presença de Atena é a duma conversação
secreta e incessante. (…) Ele sabe que não deve esperar, de todas as vezes, o
esplendor deslumbrante da epifania. Atena pode ser um mendigo ou um velho amigo.
É a presença protectora.” (ibidem)
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