"Kiss me deadly" (1955 - Robert Aldrich) |
“Os
efeitos da traição feminina são talvez mais subtis e menos imediatos, mas não
menos devastadores. Helena provoca uma guerra que ceifa a inteira linhagem dos
heróis e anuncia uma época completamente nova, em que os heróis só serão
lembrados no canto. E, mesmo enquanto obra de civilização, a traição feminina
não é menos eficaz que a matança dos monstros. O monstro é um antagonista
vencido no decurso dum duelo; a traidora suprime, pela traição, a sua própria
origem, arranca a vida do seu contexto natural. Ariane marca a ruína da Creta
onde nasceu; Antíope morre combatendo contras as Amazonas, suas próprias súbditas
que fielmente acorreram para salvá-la; Helena conduz ao desaparecimento os
heróis que amou; Medeia abandona o país da magia e chega, no fim das suas aventuras, a Atenas, ao país da lei;
Antígona trai a lei da sua cidade num gesto de piedade para com um morto que
não pertence à cidade. Como uma espiral, a traição feminina envolve-se nela
mesma e renega continuamente o que é dado. Não é a negação agindo no choque
frontal e mortal, mas a negação que é uma lenta cisão de si mesma, uma anulação
de si mesma, num jogo que pode exaltar ou destruir, e que, geralmente, exalta e
destrói.”
“Les noces de
Cadmos et Harmonie” (Roberto Calasso)
Mas que princípio de
acção é este da traição de Helena e das outras heroínas? Enquanto que o combate
dos monstros é o que há de mais urgente e de mais racional, inclusive do ponto
de vista cívico, porque está em causa a sobrevivência, esta “cisão de si mesma”
(Clitemnestra abandona as Amazonas africanas, suas irmãs) não se pode
justificar pela razão, nem é um problema de sobrevivência. É antes o efeito
duma sedução (Io trai Hera, seduzida pela divindade de Zeus).
Os saltos de
civilização poderiam ser, pois, devidos ao erro, à incoerência,
à paixão, à húbris,
enfim. O desenvolvimento duma cultura nunca é linear nem previsível porque de
facto não estamos em posição de programar a nossa vida, e a realidade, pelo
contrário, não sendo uma produção do nosso espírito, só pode obrigar-nos à
contradição e à incoerência.
A Grécia atribuiu a
acção inconsequente (os seus efeitos nunca são os previstos) ao homem e a
paixão civilizadora à mulher. Mas também o Cristianismo reconheceu a iniciativa
feminina, fazendo de Eva uma nova Pandora.
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