segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A NOVA PANDORA

"Kiss me deadly" (1955 - Robert Aldrich)


“Os efeitos da traição feminina são talvez mais subtis e menos imediatos, mas não menos devastadores. Helena provoca uma guerra que ceifa a inteira linhagem dos heróis e anuncia uma época completamente nova, em que os heróis só serão lembrados no canto. E, mesmo enquanto obra de civilização, a traição feminina não é menos eficaz que a matança dos monstros. O monstro é um antagonista vencido no decurso dum duelo; a traidora suprime, pela traição, a sua própria origem, arranca a vida do seu contexto natural. Ariane marca a ruína da Creta onde nasceu; Antíope morre combatendo contras as Amazonas, suas próprias súbditas que fielmente acorreram para salvá-la; Helena conduz ao desaparecimento os heróis que amou; Medeia abandona o país da magia e chega, no fim  das suas aventuras, a Atenas, ao país da lei; Antígona trai a lei da sua cidade num gesto de piedade para com um morto que não pertence à cidade. Como uma espiral, a traição feminina envolve-se nela mesma e renega continuamente o que é dado. Não é a negação agindo no choque frontal e mortal, mas a negação que é uma lenta cisão de si mesma, uma anulação de si mesma, num jogo que pode exaltar ou destruir, e que, geralmente, exalta e destrói.”


“Les noces de Cadmos et Harmonie” (Roberto Calasso)


Mas que princípio de acção é este da traição de Helena e das outras heroínas? Enquanto que o combate dos monstros é o que há de mais urgente e de mais racional, inclusive do ponto de vista cívico, porque está em causa a sobrevivência, esta “cisão de si mesma” (Clitemnestra abandona as Amazonas africanas, suas irmãs) não se pode justificar pela razão, nem é um problema de sobrevivência. É antes o efeito duma sedução (Io trai Hera, seduzida pela divindade de Zeus).

Os saltos de civilização poderiam ser, pois, devidos ao erro, à incoerência, à  paixão, à húbris, enfim. O desenvolvimento duma cultura nunca é linear nem previsível porque de facto não estamos em posição de programar a nossa vida, e a realidade, pelo contrário, não sendo uma produção do nosso espírito, só pode obrigar-nos à contradição e à incoerência.

A Grécia atribuiu a acção inconsequente (os seus efeitos nunca são os previstos) ao homem e a paixão civilizadora à mulher. Mas também o Cristianismo reconheceu a iniciativa feminina, fazendo de Eva uma nova Pandora.

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