segunda-feira, 31 de janeiro de 2011
A NINFA DE LESBOS
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"Chloé" (2009, Atom Egoyan) |
Catherine (Julianne
Moore), suspeitando que o marido, David (Liam Neeson), a engana, encarrega
Chloé (Amanda Seyfried), uma call-girl que conhece nos lavabos dum restaurante
de luxo, de pôr à prova a capacidade de resistência de David.
São muitos os sinais,
ao longo do filme da cumplicidade erótica entre as duas mulheres, sob o fundo aparente
do ciúme por causa de um homem, a começar pela cena (em terreno não-social) no
restaurante, em que Chloé oferece, inesperadamente, um adereço (um gancho de
cabelo), alegadamente de estimação, a uma desconhecida.
Com visível gozo, a
jovem vai mantendo Catherine ao corrente do seu trabalho de sedução, a qual
decorre conforme as piores suspeitas do ciúme. Acontece, porém, que Chloé inventou
tudo duma ponta à outra, como se tivesse compreendido a secreta intenção de
Catherine. Com efeito, David revela-se um marido irrepreensível, embora tentável,
como todos os humanos, mas Catherine precisa de se convencer duma traição
inexistente para, sob a forma duma vingança, trair David com Chloé.
Depois das
explicações, Catherine é perdoada, mas Chloé não se conforma com a situação e
lança-se com êxito na sedução do filho do casal. É nesta altura que um acidente
provoca a morte-sacrifício da ninfa, finalmente em paz, por ter tomado conta da
alma de Catherine. A família volta à rotina, mas a última imagem é o gancho de
cabelo na nuca de Catherine.
Nada sabemos de Chloé,
e a sua psicologia é incompreensível. Dir-se-ia uma ninfa desembarcada de Lesbos
para revelar Catherine a si própria. Por outro lado, a falsa traição de David é
mantida demasiado tempo, pelas razões do drama, mas isso não deixa de parecer o
expediente dum filme menor.
A única forma de “encaixar”
a personagem da Ilha de Lesbos, que no romance de Longus acabou por se casar
com o seu pastor, depois de muitas peripécias e de vencida a cultura da ignorância
da heterossexualidade, é considerá-la a chave de um complexo, como os que Freud inventou. Chloé é o desejo de si mesmo que vence o medo de envelhecer.
domingo, 30 de janeiro de 2011
O OLHAR QUE SE VÊ A SI MESMO
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Ulisses |
“A
capacidade de controlo (sophrosýne), a habilidade no auto-domínio,
a agudeza do olhar, a sobriedade na escolha dos meios adequados para atingir o
fim: tudo isso liberta o espírito das forças e dá a ilusão que nós as
utilizamos, sem que elas nos utilizem. E é uma ilusão eficaz que se vê muitas
vezes confirmada. O olhar tornou-se indiferente e lúcido em relação a tudo,
pronto a agarrar qualquer ocasião e a tirar dela vantagem. Mas neste olhar
circular, permanece uma mancha negra, um ponto que o olhar não vê: ele mesmo. O
olhar não vê o olhar. Não se reconhece como uma força idêntica àquelas que, agora,
pretende dominar.”
“Les noces de
Cadmos et Harmonie” (Roberto Calasso)
Arjuna, no “Bhagavad Gîta”, é
o contrário do Ajax de Homero. Ele não
quer combater, apesar da guerra ser justa (segundo Krishna), pois reconhece nos
adversários uma parte de si mesmo. Não sente a força e só se decide depois de
uma longa argumentação com Krishna, movido pela ideia do dever.
“Na luta deseja vencer, mas sempre com o deus.”, diz o pai a Ajax e
este responde: “Pai, com os deuses, mesmo
um homem sem préstimo pode alcançar a vitória; quanto a mim, estou convencido
de adquirir a glória mesmo sem eles.”
Sabe-se qual foi o
castigo de Atena (“a força que ajuda o olhar a ver-se a si mesmo”- Calasso).
Ajax enlouqueceu e, julgando derrotar um exército sozinho, massacrou um rebanho
de carneiros, numa antecipação do “ingenioso hidalgo de La Mancha”, arremetendo
contra os moinhos de vento.
A força ilude-nos
sempre, porque não nos conhecemos, nem sabemos por quanto tempo nos “pertence”.
“E é aqui que se abre a diferença entre
Ulisses e um herói tão ingénuo e insolente
como Ajax. Para Ulisses, a presença de Atena é a duma conversação
secreta e incessante. (…) Ele sabe que não deve esperar, de todas as vezes, o
esplendor deslumbrante da epifania. Atena pode ser um mendigo ou um velho amigo.
É a presença protectora.” (ibidem)
sábado, 29 de janeiro de 2011
IMPERFEIÇÃO
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August Strindberg (1849/1912) |
“Às
vezes é preciso não dizer tudo, nem tudo ver. Isso chama-se indulgência, e todos
temos necessidade dela.”
“La danse de
mort” (August Strindberg)
A palavra não traduz
tudo, e se tentamos fazê-la dizer mais do o que pode, somos com certeza mal
interpretados. Dizer que a morte se vê num rosto amigo, não é ajudar esse amigo
a viver. E, de resto, estamos certos de “ver” a morte ou é apenas o nosso medo
que faz, abusivamente, de intérprete?
Precisaríamos de ter
várias personalidades, independentes umas das outras, para que o que vimos não
afectasse a comunicação. Bem sei que há os que aprenderam a mentir com os
olhos, mas a mentira é suficientemente má para ser preferível não ver.
A palavra indulgência
foi bem escolhida, porque temos de começar por perdoarmos a nós mesmos não
querermos saber certas coisas, nem sermos, como se diz agora, transparentes…
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
A IDADE DO LÉXICO
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http://123nonstop.com/pictures/Mitosis_Meiosis_Metempsychosis |
“A
idade é uma vileza espalhada
no
léxico”
“Lugar” (Herberto Helder)
Uns dizem que a idade
que conta é a do espírito. E nós vemos que o nosso Manuel de Oliveira é mais
jovem do que muitos jovens. Mas mesmo o seu espírito não pode fazer com que não
tivesse vivido.
Cometemos erros
durante toda a vida, mas não são os mesmos erros de uma idade para outra. E, no
fundo, ser jovem é esquecer que já vivemos, nesta ou noutra vida, presos à roda
das metempsicoses platónicas.
Por isso é que o
poeta diz:
“Há
sempre uma noite terrível para quem se despede
do
esquecimento. Para quem sai,
ainda
louco de sono, do meio
do
silêncio.”
(ibidem)
É nessa altura que
pesam as palavras, acusando a passagem do tempo.
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
A POLÍTICA DO INFERNO
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S. Gregório de Nisa (330 -395) |
“As
ideias populares e cultas relativas a um além com recompensas e castigos eram
então, por certo, tão largamente espalhadas quanto o haviam sido durante toda a
antiguidade, mas a versão cristã original destas crenças, coerentemente ligada
à ‘boa nova’ e à redenção do pecado, não era a ameaça dum castigo eterno e dum
eterno sofrimento, mas, pelo contrário, o descensus
ad inferos,
a missão do Cristo no mundo subterrâneo onde tinha passado os três dias entre a
sua morte e a ressurreição para suprimir o inferno, derrotar Satã e libertar as
almas dos pecadores mortos, como já tinha liberto as almas dos vivos, da morte
e do castigo.”
“La crise de la
culture” (Hannah Arendt)
A doutrina do Inferno
teria uma origem política e não religiosa. Diz Arendt que a Igreja, tendo
assumido funções temporais com a queda de Roma, incorporou, falseando-a, a
doutrina de Platão dum Além dotado de castigos e recompensas destinada à “multidão”
(a da imortalidade da alma só poderia ser compreendida por poucos).
Primitivamente, a redenção estendia-se ao próprio Diabo e os próprios tormentos
do Inferno eram considerados “tormentos da consciência”. Mas estas doutrinas ensinadas por Orígenes e
admitidas ainda por Gregório de Nisa foram declaradas heréticas.
Que a Igreja tenha
levado quase dois milénios para fazer um tímido aggiornamento
relativamente a esta doutrina política é indicativo da importância que dá à
tradição. Não a “descontinuar” de modo nenhum é sempre preferível a uma
correcção da própria história. No entanto, repor os factos quanto à origem do
Inferno não significa que a doutrina oficial passasse a ser vista como uma
mentira, porque não estamos a lidar aqui com a verdade abstracta mas com a crença
e com uma prática secular.
É curioso que a
figura de Satã ou a ideia do Mal metafísico tenham sido usadas por políticos
ocidentais do nosso tempo muito mais do que pela Igreja. De facto, são ideias
muito mais úteis à política e à guerra do que à verdadeira religião.
quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
A ADAPTAÇÃO ESQUIZOFRÉNICA
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http://www.acus.org/files/u3/economy-cube.jpg |
“Os
sistemas complexos são incapazes de apreender completamente a sua complexidade.
Se o viessem a conseguir, seriam efectivamente já bem mais complexos do que o
eram na origem, sendo dado que o sistema conteria além do mais uma descrição da
sua própria complexidade. É por isso que, nos sistemas complexos, todas as
operações são dispostas duma maneira redutora e isto tanto em relação à sua
própria complexidade, como em relação ao seu ambiente. Em todo o caso, a
complexidade constrange à selecção, e isso vale igualmente no caso de
tentativas visando tematizar a própria complexidade. Cada auto-observação e
cada auto-descrição deve, nessa medida, assentar numa auto-simplificação.”
“Politique et
compléxité” (Niklas Luhmann)
A economia dos
economistas é, pois, uma auto-descrição do
sistema necessariamente simplificada e redutora. Porque, além do mais, foram
obrigados a seleccionar em função dum modelo que é a “economia”.
Na falta duma representação
completa do sistema (eles ocupam-se, em princípio, duma especialidade), não é
menos necessária uma “identidade” que possa observar-se e descrever-se.
O especialista da
economia é, assim, um observador implicado na sua selecção. Mas como é difícil
separar os factos económicos da realidade social e política, a especialidade
tende a tornar-se uma teoria geral, ou seja, uma ideologia, que continua tendo
o sentido dum modelo económico. O tudo é político transformou-se, pois, no tudo
é economia.
Luhmann diz outra
coisa: “Quanto mais o equipamento semântico
da auto-descrição é rico, mais o sistema pode fazer depender as suas operações
internas dos acontecimentos exteriores que ele deve tratar como relevando do
acaso (…)”
Ora isto deve ler-se
como uma espécie de adaptação “esquizofrénica” à realidade. Porque se a
faculdade de dar sentido aos acontecimentos e às operações concomitantes
depende da riqueza da descrição, o facto da exterioridade não poder ter um
sentido e uma lógica próprias (decorrentes dum outro sub-sistema ou dum sistema
mais abrangente), mas relevarem sempre do acaso, expõe-nos a grandes desilusões
e a grandes perigos.
terça-feira, 25 de janeiro de 2011
O ALÉM-VIDA
Em “Hereafter”, Clint
Eastwood surpreende-nos com um tema muito polémico: o além-vida. Não para
entrar no domínio do espiritual ou da alta cavalaria metafísica, mas como um
empirista que recolhe “factos” (mesmo se são “apenas” psicológicos) e se firma
no bom senso do americano médio.
George Lonegan (Matt
Damon) tem o dom (ele diz que é uma maldição) de contactar os mortos, tocando
as mãos dos vivos. Este é, como se sabe, um terreno fértil para a charlatanaria, pois tem um “mercado”
inesgotável. A necessidade de voltar a “ver”, sobretudo, os que partiram dum modo abrupto, por assim
dizer, sem se despedirem, é decerto sentida por muitos, e nem todos podem
ultrapassá-la com uma sã filosofia ou com a religião tradicional.
George resolveu
abandonar a prática, que o impedia de levar uma vida normal, fazendo-o parecer
uma espécie de “freak”. Mas há sempre quem o reconheça e o obrigue a reincidir.
A incredulidade
revelada pelos terceiros não parece ser compartilhada por Clint. Ele, pelo
menos, concede o benefício da dúvida. Mas, como se o desafio fosse de mais para
o seu jogo, a certa altura, o filme sobre o Além transforma-se, subitamente,
numa história de amor. O “freak” encontra a sua alma gémea, uma francesa que “morreu”
durante o tsunami de 2004 na Indonésia e escreveu um livro sobre as visões que
então a assaltaram.
Clint Eastwood dá-nos
um filme falhado, mas empolgante, com o seu quê de provocatório.
segunda-feira, 24 de janeiro de 2011
A NOVA PANDORA
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"Kiss me deadly" (1955 - Robert Aldrich) |
“Os
efeitos da traição feminina são talvez mais subtis e menos imediatos, mas não
menos devastadores. Helena provoca uma guerra que ceifa a inteira linhagem dos
heróis e anuncia uma época completamente nova, em que os heróis só serão
lembrados no canto. E, mesmo enquanto obra de civilização, a traição feminina
não é menos eficaz que a matança dos monstros. O monstro é um antagonista
vencido no decurso dum duelo; a traidora suprime, pela traição, a sua própria
origem, arranca a vida do seu contexto natural. Ariane marca a ruína da Creta
onde nasceu; Antíope morre combatendo contras as Amazonas, suas próprias súbditas
que fielmente acorreram para salvá-la; Helena conduz ao desaparecimento os
heróis que amou; Medeia abandona o país da magia e chega, no fim das suas aventuras, a Atenas, ao país da lei;
Antígona trai a lei da sua cidade num gesto de piedade para com um morto que
não pertence à cidade. Como uma espiral, a traição feminina envolve-se nela
mesma e renega continuamente o que é dado. Não é a negação agindo no choque
frontal e mortal, mas a negação que é uma lenta cisão de si mesma, uma anulação
de si mesma, num jogo que pode exaltar ou destruir, e que, geralmente, exalta e
destrói.”
“Les noces de
Cadmos et Harmonie” (Roberto Calasso)
Mas que princípio de
acção é este da traição de Helena e das outras heroínas? Enquanto que o combate
dos monstros é o que há de mais urgente e de mais racional, inclusive do ponto
de vista cívico, porque está em causa a sobrevivência, esta “cisão de si mesma”
(Clitemnestra abandona as Amazonas africanas, suas irmãs) não se pode
justificar pela razão, nem é um problema de sobrevivência. É antes o efeito
duma sedução (Io trai Hera, seduzida pela divindade de Zeus).
Os saltos de
civilização poderiam ser, pois, devidos ao erro, à incoerência,
à paixão, à húbris,
enfim. O desenvolvimento duma cultura nunca é linear nem previsível porque de
facto não estamos em posição de programar a nossa vida, e a realidade, pelo
contrário, não sendo uma produção do nosso espírito, só pode obrigar-nos à
contradição e à incoerência.
A Grécia atribuiu a
acção inconsequente (os seus efeitos nunca são os previstos) ao homem e a
paixão civilizadora à mulher. Mas também o Cristianismo reconheceu a iniciativa
feminina, fazendo de Eva uma nova Pandora.
domingo, 23 de janeiro de 2011
UMA PROCISSÃO
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"Blessed is the Army of the Heavenly King" (detalhe) |
No painel da Galeria Tretyakov, “Abençoado é o Exército do Rei Celeste” (ca.1552), o príncipe Alexandre Nevsky, precedido por S. Miguel Arcanjo, avança à frente do exército a caminho de Jerusalém. A Cidade Celeste encontra-se à esquerda num círculo e das suas muralhas (sob uma tenda tricolor), o Menino ao colo da Virgem distribui coroas para os anjos colocarem na cabeça dos justos. À direita, num círculo mais pequeno, vê-se Babilónia em chamas. Dois círculos e uma procissão de um para o outro. Das figuras miniaturais nenhuma se destaca, nem mesmo a do príncipe (a não ser pela cor da capa), talvez o maior herói da história russa e que foi canonizado em 1547.
Nos ícones, a
perspectiva (já redescoberta no Quattrocento) não joga nenhum papel. O
tamanho das figuras é o indicador da sua importância. O espaço não está
unificado e podem coexistir tempos e lugares diferentes. Mas no “Exército do Rei
Celeste” os heróis não são valorizados na procissão, como se estivessem
submetidos a uma perspectiva longínqua. Percebemos que isso não é uma entorse
aos princípios da pintura icónica, mas que é determinado pela importância dos
círculos de Jerusalém e de Babilónia. O verdadeiro herói é esse colectivo que
se arranca ao sortilégio de Babilónia, a Grande Prostituta.
sábado, 22 de janeiro de 2011
VIOLÊNCIA SUSSURRADA
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Tchekov e Gorki em Yalta, 1900 |
“Sónia
- (…)Nós veremos o céu brilhar como uma jóia. Veremos o mal e a nossa dor
afundarem-se na grande compaixão que envolve o mundo. A nossa vida será
pacífica e terna e doce como uma carícia. Eu tenho fé. [limpa as lágrimas] Meu
pobre, pobre tio Vânia, mas tu choras! [chorando] Tu nunca soubeste o que era a
felicidade, mas espera, tio Vânia, espera! Nós descansaremos. [abraça-o] Nós
descansaremos. [o chocalhar do guarda ouve-se no jardim; Telegin toca
suavemente; a Senhora Voitskaya escreve qualquer coisa na margem do seu
folheto; Marina tricota a sua meia] Nós descansaremos.”
“O Tio Vânia” (Anton Tchekov)
O encanto do teatro
de Tchekov está no tom quase sussurrado da violência. E por muito que forcemos
uma interpretação política (era fácil para a Revolução fazê-lo) desse huis
clos
provinciano em que as almas mais puras são destruídas só porque um ocioso pensa
nelas (“A gaivota”), ou simplesmente porque a vida as usou e, de repente, se
encontram velhas e já sem futuro para os ideais da juventude (“O tio Vânia”), a
melancolia e o mal de viver são o verdadeiro tema.
O amor parece
condenado a falhar ou a durar só uma tarde de verão. Todos parecem amar a
pessoa errada ou a que lhes é proibido amar, como se precisassem de verificar o
seu destino infeliz e sem escapatória. E há sempre o álcool ou qualquer outra
forma de entorpecimento para aguentar o cerco da realidade. O campo é o lugar
onde melhor se sente esse cerco que culmina, por exemplo, na venda da
propriedade familiar (“O cerejal”). Por este lado, as transformações sociais e
a decadência da pequena nobreza ou da burguesia rural sugerem pistas de
interpretação que nos desviam do essencial.
Quando Serebrakoff, o
velho professor do “Tio Vânia”, exorta o cunhado a agir, a trabalhar, para dar
uma volta ao marasmo em que vive, sentimos toda a ironia do final da peça, em
que tio e sobrinha (que já perdeu a esperança do amor) se devotam, como os monges da escrita, Bouvard
et Pécuchet, à contabilidade doméstica.
sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
ANANKÉ
“E
a Necessidade, lembra Eurípides por tê-la conhecido ‘atravessando as Musas e os
cimos’, sem nunca ‘nada ter encontrado de mais forte’, é a única potência que
não tem altares nem estátuas. Ananké é a única divindade que não escuta os
sacrifícios.”
“Les noces de
Cadmos et Harmonie” (Roberto Calasso)
A omnipotência não
era um atributo dos deuses do Olimpo, nem do próprio Zeus. Todos obedeciam ao
que “tem que ser”. Essa ideia aproxima-se muito do que pensamos da lei em geral
e, particularmente, da lei que julgamos reger o universo.
Deuses que, por
exemplo, se deixam apanhar na rede do amor ( o amor é a única actividade de
Zeus parece pensar a ciumenta Hera), não são assim tão diferentes de nós que,
na flor da idade, nos podemos sentir deuses.
Os Gregos sabiam que
não fazia sentido erguer um altar à Necessidade, o que faz jus ao espírito que
inventou a lógica.
Enquanto que um Deus omnipotente
é uma projecção da nossa fraqueza e compensa-a junto dos espíritos fracos, a
Necessidade não admite compensação nenhuma. O que corresponde à nossa situação
de mortais e à impossibilidade de conhecermos em nós tudo o que não pessoal.
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
PARA ALÉM DOS SÍMBOLOS
“Um
homem vive uma profunda eternidade que se fecha
sobre
ele, mas onde o corpo
arde
para além de qualquer símbolo, sem alma e puro
como um sacrifício antigo.”
“A colher na
boca” (Herberto Helder)
Só as almas são puras
ou impuras. O corpo, esse, nem é templo cristão, nem a carne dos nossos vícios.
Tal como os animais são puros porque, como diria Álvaro de Campos, sentem
apenas e podem pertencer, mas não se pertencem.
O que julgamos ser o
mais íntimo e mais pessoal de nós mesmos, ou uma simples cápsula nesta viagem
da existência, arde, diz o poeta, “para além dos símbolos”.
São os símbolos que
nos permitem reivindicar o corpo com que nascemos, mas os símbolos não são a
realidade. Sabemos ao menos o que é essa “eternidade que se fecha” (e que
podemos pensar que nos expulsa)?
quarta-feira, 19 de janeiro de 2011
O DEDO A MATEUS
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"A vocação de Mateus" (Caravaggio) |
“Entre
a exaustão do maneirismo tardio e o desabrochar do barroco, a pintura de Caravaggio
é um bloc d’abîme
que escapa à ortodoxia ideológica pós-tridentina e que antecipa, no pathos e na crueza material das suas
figuras, na composição dramática e na exploração magistral do chiaroscuro, muito do que virão ser os
motivos da pintura posterior.”
“Roma -
Exercícios de reconhecimento” (António Mega Ferreira)
Ocultado pela figura
de Pedro (?), Cristo é quase só o olhar que acompanha o indicador, dentro dum
triângulo de sombra que o halo intercepta discretamente.
Aquele gesto é
imperioso. Não há da parte do escolhido, Mateus, qualquer reconhecimento ou
pré-disposição. Ele é designado pela autoridade invisível que não admite
réplica alguma.
Mateus, no meio do
grupo dos publicanos, estava absorvido pela cobrança ( é a sua profissão ). As
moedas espalhadas na mesa parecem troçar do múnus espiritual em que o querem
investir.
O indicador de Cristo
tem uma conotação na pintura: é a da denúncia. Ao mesmo tempo que escolhe o
discípulo, Cristo denuncia a vida do publicano, o “vil metal”.
Como bem observa Mega
Ferreira, a propósito do outro quadro da capela Contarelli, “O martírio de S.
Mateus”, há aqui uma “autêntica
dessacralização do sagrado, tal como o entendia a pintura religiosa dominante.”
Isso está bem patente na “obscuridade” de Cristo e no plano horizontal em que
surgem todas as figuras.
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