"Em termos formais, o poema irrompe igualmente com o seu quê de inesperado dentro do quadro bíblico. O nome de Deus aparece uma única vez nomeado (Ct 8,6), e, ainda assim, numa passagem um pouco obscura. Tudo o mais é dominado 'pelo realismo das evocações e descrições da relação amorosa' (Y. Simoens). Coloca-se entre parêntesis a sobriedade da antropologia bíblica, e exalta-se demoradamente a beleza, o aspecto, os detalhes das figuras feminina e masculina. As palavras como que se tornam de seda. Há aqui um extraordinário trabalho de construção verbal que nos obriga a concluir que o autor anónimo seria um grande poeta (ou uma grande poeta, como hoje se tem por provável)."
"A Leitura Infinita" (José Tolentino Mendonça)
Não se pode, decerto, atribuir à ambiguidade das pessoas envolvidas no amor do Cântico dos Cânticos ("O teu nome é um perfume que se espalha; eis por que as jovens te amam." Falaria assim uma jovem apaixonada?), a "anomalia" deste poema no conjunto dos livros do cânone bíblico. Sem dúvida, terá permitido que a tradição rabínica e eclesial pudesse ver nele um símbolo do amor entre Deus e o povo eleito ou a Igreja. Para não falar da inspiração que foi para místicos como Santa Teresa de Ávila.
Não se esqueça, também, que o outro nome por que é conhecido o poema é O de "Cânticos de Salomão", rei que foi, como se sabe, um expoente da sabedoria antiga. Mas o nome de Salomão parece aqui mais uma caução, um atestado anti-sensualista, do que designando o espírito do autor.
De qualquer modo, o "Cântico dos Cânticos" é o texto mais próximo do erotismo a que a Bíblia chegou, e os problemas de interpretação de que foi objecto obrigaram homens como Calvino a uma espécie de confissão do género do "creio porque é absurdo" (Tertuliano).
É provável que o poema seja um "Cavalo de Tróia" virtual (apesar de toda uma corrente mística) do paganismo helénico (que não corresponde à imagem sensualista que alguma escultura pode levar a supor). Na recente polémica provocada pelas declarações de Saramago, não foi este livro da Bíblia um dos que ele "salvou"?
Tolentino, contra a interpretação alegórica e simbólica propõe, na esteira de Paul Beauchamps, a leitura do que está escrito: "O Cântico não é uma narração enigmática, cuja interpretação precise necessariamente duma chave". E o que é legível é o amor sensual e "profundamente espiritual" entre um homem e uma mulher.
Será essa a solução "salomónica" para o aparente erro de contexto do "Cântico dos Cânticos"?
Mesmo que reconheçamos a espiritualidade do amor natural, estamos ainda no território de Eros e não no de Jeová, o Deus ciumento que "sonda os rins" do crente, nem no do amor crístico que vai até à radical negação do corpo.
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