"'Esse acto abominável e sensual a que chamamos ler o jornal', escreveu Proust, 'graças ao qual todas as desgraças e cataclismos do universo ocorridos nas últimas vinte e quatro horas, as batalhas que custaram a vida a cinquenta mil homens, os homicídios, as greves, as falências, os incêndios, os envenenamentos, os suicídios, os divórcios, as emoções cruéis de estadistas e actores, são transformados por nós, que nem queremos saber, num presente matinal, coexistindo em maravilhosa harmonia, de uma forma particularmente excitante e revigorante, com a recomendada ingestão de alguns tragos de café au lait.'"
(in "Como Proust Pode Mudar a Sua Vida" de Allan de Botton)
Dando como certo que a maioria dos que lêem os jornais ou vêem o telejornal não é masoquista, é de admitir que, realmente, não queiramos saber. Não falo daquelas pitadas de intriga política que tanto animam uma conversa de café (ou de salão, no caso de Proust) e que, sejamos realistas, são tão necessárias à sociabilidade como o jogo das simpatias e das antipatias. Falo do que poderia ser uma experiência traumatizante se a sentíssemos sem precaução e sem a anestesia do hábito, como tantas tragédias humanas que vemos emolduradas por um ecrã, comodamente instalados no sofá.
Há uma ponta de cinismo na observação de Marcel, que hoje se encontraria ainda mais justificada pela mediatização massiva. Na verdade, por imperativo cultural, não podemos alhear-nos do que se passa no mundo, mesmo se esse "conhecimento" contribui para aumentar o nosso sentimento de impotência. A ilusão de que queremos, realmente, saber é um pequeno preço a pagar pelo acto "abominável e sensual".
Se a "razão cínica" vem "estragar a festa", devemos saudá-la como a homenagem possível à verdade.
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