sábado, 12 de julho de 2008

VIOLÊNCIA E PAIXÃO


"Judite e Holofernes" (Caravaggio)


A vida de Caravaggio (Michelangelo Merisi) é das mais trágicas da história da arte.

A peste levou-lhe o pai ainda criança e logo teve que separar-se da mãe para estudar num atelier de Roma.

Nas ruas da Cidade Eterna, naquele tempo, campeava a desordem e as brigas entre os bandos acabavam muitas vezes com a morte de alguém.

Merisi sentia-se atraído por esse meio e tinha a espada pronta. Diz uma testemunha que costumava trabalhar durante duas semanas e desaparecer a seguir por dois meses no basfond da cidade, entre as figuras dos seus quadros.

Tendo morto um homem num duelo viu-se obrigado a fugir para Nápoles e depois para Malta, donde a condenação do papa o pôs de novo em fuga, para vir morrer, exausto e doente ao desembarcar em Porto Ercole, na Toscânia.

Deixou-nos uma obra em que a sua experiência da beleza do corpo humano sob a luz, colhida durante as suas imersões na vaza da cidade, ainda hoje nos impressiona, pela teatralidade e por um erotismo que não olha a géneros nem idades.

Por isso o que chamaram de tenebrismo e às vezes de realismo não me parecem dar conta do génio deste pintor.

Pintar a virgem com as feições duma prostituta não era pintar uma prostituta, nem sequer aquela mulher. S. Pedro não é tal mendigo encontrado numa praça da cidade, nem o seu corpo é um corpo real, por muita exactidão anatómica que pareça revelar.

Há em Caravaggio um poder de transfiguração que não se equipara ao de nenhum outro artista. Ele parece frequentar os infernos para provar que Deus existe, e cada amostra que nos traz dos abismos é mais obra da luz e do ideal do que da natureza.

Não. Caravaggio não é um realista. Haverá alguma das suas figuras, por mais grotesca, que não revele o esplendor da forma humana?

Mesmo a velha que assiste Judite cortando a cabeça de Holofernes é um planeta do rosto da heroína que contribui para realçar, como o jogo da luz e da sombra realça e dirige o gesto que designa Mateus no quadro de S. Luís dos Franceses.

Um filme como o que Angelo Longoni fez para a RAI (2007) exprime todas estas coisas com mestria. Mas surpreende que a conhecida homossexualidade do pintor lombardo seja aflorada apenas quando ele é objecto do desejo e não tenha qualquer relevância no filme. Poder-se-ia quase dizer, tendo presente a versão de Derek Jarman de 1987, pelo contrário toda centrada nela, que Longoni pretendeu provar que era possível falar desta pintura sem a ter em nenhuma conta.

Se os costumes fossem outros e a história da Igreja não fosse tão refractária ao corpo da mulher, talvez pudéssemos saber se tem afinal razão...

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