Witold Gombrowicz (1904-1969)
"Ofereceram-lhe chá que ele bebeu, ficou-lhe um pedaço de açúcar no pires, estendeu a mão para o apanhar, mas, sem dúvida, deve ter considerado esse gesto como insuficientemente motivado, porque recuou a mão; no entanto, este gesto de recuo, sendo no fundo ainda menos motivado, estendeu de novo a mão para o pedaço de açúcar que levou à boca e comeu - já não pelo prazer de o trincar mas para ter um comportamento mais ou menos decente... em relação ao açúcar ou em relação a nós...Querendo, sem dúvida, apagar esta impressão desagradável, ele tossiu, tirou um lenço do bolso - mas não ousou assoar-se e mexeu simplesmente o pé. Mas mexer o pé deve-lhe ter, sem dúvida, criado novas complicações, porque se calou e ficou completamente imobilizado."
"La Pornographie" (Witold Gombrowicz)
A personagem (Fryderyk), nas palavras do narrador, não faz outra coisa senão "comportar-se", é o nosso lado visível para os outros completamente determinado pelo exterior.
No cinema, "Zelig", de Woody Allen, pertence à mesma estirpe. Mas enquanto o camaleonismo de Zelig não parece trazer-lhe qualquer problema de consciência, Fryderyk sente-se comprometido pelo constante fiasco da sua "máscara". É como se tivesse perdido o instinto de se adaptar àquilo que os outros esperam de nós e precisasse, a todo o momento, de novas instruções.
Face à impossibilidade de se projectar na "forma superior", como diz Gombrowicz, "o homem atormentado pela sua máscara, fabricará para o seu próprio uso e às escondidas uma espécie de subcultura: um mundo construído com o lixo do mundo superior da cultura, domínio da fancaria, dos mitos impúberes, das paixões inconfessadas... domínio secundário, de compensação. É aí que nasce uma certa poesia envergonhada, uma certa beleza comprometedora.." É esta a pornografia.
A acção do romance passa-se no tempo da ocupação alemã. Magistralmente, a "persona" disfuncional de Fryderyk denuncia a verdade da situação política. Mas aponta também para uma ontologia da acção. O homem imobilizado pela máscara, como Fryderyk não está simplesmente à altura.
Em "La Pornographie" é a ligeireza e a irresponsabilidade dos adolescentes que torna a acção possível. Porém, esta seria muito melhor definida como paixão.
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