sábado, 27 de março de 2010

A PAIXÃO DO REAL




"Queria também dizer-te: a passagem desta vida tão dura à minha vida actual, eu sinto que isso me corrompe. Compreendo agora o que é um operário que se torna 'permanente'. Eu reajo tanto quanto posso. Se me deixasse ir, esqueceria tudo, instalar-me-ia nos meus privilégios sem querer pensar que são privilégios."

(Simone Weil, fin de décembre 1935, lettre à Albertine Thévenon)


A experiência de alguns meses de fábrica deixou na jovem Simone Weil a marca da escravidão.

"Há dois factores, nesta escravidão: a velocidade e as ordens. A velocidade: para 'conseguir' é preciso repetir movimento após movimento numa cadência que, sendo mais rápida do que o pensamento, proíbe não somente o curso da reflexão, mas até o da 'divagação' (rêverie). (…) As ordens: desde que se pica o ponto à entrada até que se volta a picar à saída, pode-se a cada momento receber uma ordem qualquer. E é preciso sempre calar e obedecer. A ordem pode ser penosa, implicar perigo na execução ou ser mesmo inexecutável; ou então os chefes podem dar ordens contraditórias; isso não importa nada: calar e submeter-se." (ibidem)

A franzina professora de filosofia, "de passeio (en vadrouille) pela classe operária" não estava preparada para uma experiência tão dura. O próprio facto de ter metido uma licença com fim à vista não ajudava, como não ajudava a sua constituição física e o desígnio de pensar, apesar de tudo, as condições do trabalho.

É curioso que o sentimento quase poético que nos transmite uma recordação de Albertine Thévenon possa ter sugerido a Simone a ideia dum "lugar onde nos confrontamos duramente, dolorosamente, mas ainda assim com alegria, à verdadeira vida."

Albertine diz que "chegando a Saint-Chamond, ao cair da noite, experimentou a alegria de se sentir em casa ao ver uma fábrica com as oficinas iluminadas, cuja luz projectava a sombra das máquinas, das correias e das roldanas através dos vidros."

"Sentir-se em casa" ao mesmo tempo que se sofre a dura necessidade é uma ideia que anuncia já a espécie de martírio que foi o final da vida da filósofa, tanto quanto a "corrupção" que para ela significa deixar de sofrer.

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