segunda-feira, 22 de março de 2010

FANTASMAS




Há sempre qualquer coisa de mórbido no encontro com um amigo de infância. São pensamentos de velho que ocorrem. O projecto não é possível sem a cortesia obrigatória de relembrar o passado. E é um prazer amargo visitar os lugares da infância, como se fosse possível reviver a inocência perdida. Mas há mais. De facto, ninguém relembra da mesma maneira. A história de cada um reformula o seu próprio passado. Por isso a recordação do outro é sempre estranha.


O santuário da poesia interior é, assim, profanado pelo espírito mundano e por um sentimento de tristeza que nos vem de não podermos agir. Somos sempre cépticos quanto à capacidade do amigo apreender o genuíno significado do que foi um tempo comum. Outras vezes é a vontade de não recordar que existe em nós próprios a impor a banalização e o artifício.

É um novo personagem que nos interessa quando ouvimos o amigo. Surpreende-nos o sentimento de estarmos a ser indiscretos, porque geralmente as pessoas são mais prudentes quando não se conhecem. Abandonamos a posição de evocador para seguir o espectáculo dum homem que mostra mais do que o que deve.

A relação interrompida não permite encontrar a linguagem apropriada. Daí que se amaciem os ângulos com uma bebida. É cruel e pouco polido tentar reconhecer a frio, como quem examina diante dum espelho o desgaste dos anos. Pensamos, talvez, que há qualquer coisa que se perde quando se dá primeiro atenção ao corpo e se adormece, por assim dizer, a vigilância indiscreta. Mas engana-se aquele que se julga livre de pensar à frente dum rosto que tem tal poder de nos emocionar e pôr em causa.

É mais sábio poupar ao espírito essa cilada, mesmo se é preciso colocarmo-nos sob a protecção dum deus inferior.

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