terça-feira, 18 de agosto de 2009

HERANÇA SEM TESTAMENTO


Thomas Cromwell (1599/1658)


“A Magna Carta (1215), por exemplo, não poderia ter sido debatida por mais do que um pequeno fragmento de Britânicos – ou mesmo de barões – do seu tempo. Escrito em Latim, uma língua estrangeira culta, o documento sobreviveu nalgumas variantes escritas ‘originais’ e entrou na tradição constitucional Britânica mais pelo boato e o ouvir dizer do que pela inspecção pública. A grande tradição duma constituição Britânica não escrita deixou o conhecimento e o escrutínio dos direitos dos Britânicos a juízes e advogados mais do que aos do público.”

“Cleopatra’s nose” (Daniel Boorstin)


A seguir, Boorstin realça o novo e importante significado, para a democracia, que assume uma constituição escrita como a dos EEUU.

As tradições contam muito num país como a Grã-Bretanha que, ao mesmo tempo, está aberto a todas as inovações técnicas e à revolução dos costumes. O pragmatismo enforma a mentalidade geral e a ideologia é vista com suspeita pelo que promete de condicionamento da liberdade do indivíduo, embora haja quem veja nessa atitude a adopção inconsciente, e por isso mais perigosa, duma ideologia.

Mas o facto de nunca ter sido precisa uma constituição escrita pressupõe que a eficácia do sistema legal dos Ingleses se deve a um processo natural de crescimento. Porque é mais fácil de conceber uma mudança de ideias do que uma mudança de natureza, a herança da Magna Carta sobreviveu sem grandes crises, tirando o episódio de Cromwell e dos seus ironsides. Talvez por isso, este povo nunca tivesse sentido o que levou o poeta René Char a dizer “notre héritage n’est précedé d’aucun testament”, na sequência do colapso da França, durante a segunda guerra mundial, e da necessidade abrupta da acção (Hannah Arendt).

Por outro lado, a constituição americana parece mais ideológica do que o povo a que se aplica, sem dúvida por influência da Revolução Francesa e das ideias do tempo. E pode pensar-se que o facto de ela nunca ter sido realmente alterada reflicta a necessidade, para uma nação sem tradições, de sacralizar o seu documento maior.

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