terça-feira, 4 de agosto de 2009

COMO NUM LIVRO ABERTO


Alain Delon em "Un Amour de Swann" (1984-Volker Schlöndorff)


"E, no entanto, mesmo sob as camadas de expressões diferentes, de disfarces e de hipocrisia que tão mal o maquilhavam, o rosto do senhor de Charlus continuava a calar a toda agente o segredo que ele me parecia gritar. Eu ficava quase incomodado pelos seus olhos onde tinha receio que ele me surpreendesse a lê-lo como num livro aberto, pela sua voz que me parecia repeti-lo em todos os tons, com uma incansável indecência. Mas os segredos são bem guardados pelos seres, porque todos os que deles se aproximam são surdos e cegos."

"La Prisonnière" (Marcel Proust)


Como diz Proust, em casos como este, acreditamos mais facilmente no que diz um terceiro no que no testemunho dos nossos próprios olhos. Não é esse o poder de Iago e da entremetteuse?

Essas palavras hábeis destilam o seu sortilégio na nossa orelha, que não guarda as distâncias da visão, forjando um secreto complot com os nossos temores ou os nossos desejos. Há uma bela expressão na nossa língua que diz isso mesmo: "emprenhar pelos ouvidos". Esta gravidez verbal diz-nos que o ouvido é um canal mais directo para o centro das emoções. Não há guarda pretoriana que limite as audiências.

Evidentemente que, no romance, o narrador deixou de ser "surdo e cego" a partir da célebre cena no pátio dos Guermantes que começa por uma lição de ciência natural (a orquídea e o zangão). Só depois ele ficou dentro do segredo, ou como diz outra sugestiva expressão, "abriu os olhos".

A nossa visão pode ter, como se sabe, vários graus de abertura. Como numa visita guiada a um museu, os nossos olhos vêem só o que lhes aponta o guia.



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