sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

VISÕES DE KAFKA



"K. torna-se um acessório, aterrado mas impaciente, do crime que contra ele mesmo é cometido. Em todos os suicídios existe simultaneamente apologia e aquiescência. Como declara o Capelão, na mais desesperada das zombarias (mas será que o é?): 'o Tribunal nada quer de si. Recebe-o quando você chega, despede-o quando sai.' A fórmula está deliberadamente próxima duma definição da vida humana, da liberdade de ser culpado, que é a do homem caído."

"Uma nota sobre 'O Processo' de Kafka" (George Steiner)


No princípio do livro de Kafka, a culpa insinua-se no próprio modo de falar e na dúvida sobre a pronúncia e a ortografia das palavras. O "Tribunal", aqui muito mais do que uma reunião presidida por um juiz, é um corpo em expansão cancerosa que pode surgir logo atrás do tabique numas águas-furtadas ou ao lado da despensa, começa por pôr K. fora da língua materna.

A liberdade de K., na verdade, uma diabólica ironia, é a de aceitar uma responsabilidade que nada tem de pessoal (podia ser a dos descendentes até à quinta geração duma maldição sagrada), ou excluir-se da humanidade.

A frase do Capelão sobre a indiferença do Tribunal, que não tem, evidentemente, o sentido da isenção, revela o interior do mecanismo duma necessidade estranha em relação à anankê dos Gregos que submete deuses e homens, pois pode passar sem eles (tornando-os "acessórios"). Isso tanto podia ser o "ponto de vista de Sírius" (dando-nos uma importância microscópica), como o da auto-suficiência da lógica.

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