quinta-feira, 8 de abril de 2010

COM AS PATINHAS DE FORA


Corte del Remer
(http://www.flickr.com/photos/daisuke_ido/61623318/)


"(…) mas lembro-me agora dum exemplo muito curioso, numa arquivolta duma casa na Corte Del Remer perto do Rialto, em Veneza. É composta por uma coroa de floreados – um modelo bizantino recorrente – com um animal em cada dobra; o conjunto envolvido por dois laços. Cada animal, saltando ou correndo, arranhando ou mordendo, é mantido estritamente, apesar disso, na sua dobra e entre os laços. Nem o sacudir duma orelha, nem a ponta duma cauda ultrapassam o desenho desta linha, numa série de vinte e cinco ou trinta animais; até que, subitamente, e por íntimo consentimento, dois pequenos bichos (não olhando para os restantes, mais incontrolados do que os outros), um em cada lado, colocam as suas patinhas através do laço envolvente, exactamente no mesmo ponto do seu curso, e assim quebram a continuidade da sua linha."

"The stones of Venice" (John Ruskin)


A transgressão aqui apontada por Ruskin é um mero acidente no ornamento duma arquivolta, mas parece satisfazer uma necessidade acima do gosto pela simetria e o respeito dos contornos.

O famoso crítico de arte inglês, tão admirado por Marcel Proust que traduziu algumas das suas obras, vê nas leis da arquitectura e da arte em geral o trabalho duma inspiração de ordem moral. As três dezenas de animais da arquivolta do Rialto encontram-se limitadas e contidas por duas linhas, existindo aí, "uma feliz submissão, como se agradados, mais do que vexados por lhe sugerirem uma lei tão bela que segui-la é o mesmo que pôr-se de acordo com a sua própria natureza". E "podendo haver aqui e ali uma transgressão e uma adaptação a qualquer outra necessidade (…), apesar disso, esta liberdade é sempre para ser aceite com o sentido solene duma permissão especial."

Ao encontro da tese do paradigma foucauldiano, podemos aperceber-nos de que nesta fusão entre estética e moral, defendida por Ruskin, se anuncia já uma teoria da evolução (Darwin ia ainda a meio do seu famoso ensaio) que de modo nenhum põe em causa a sua visão ética (com a liberdade da transgressão) e religiosa da natureza e da arte.

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