terça-feira, 8 de abril de 2008

OS MIL OLHOS DO SENTIDO


O cão Argos

"Muito mais tarde, já em Munique, fiquei encantado com um espectáculo inesperado, surpreendido no meu próprio atelier. Era quase o crepúsculo, eu voltava a casa com a minha caixa de tintas, depois dum estudo, ainda mergulhado no meu sonho e na recordação do trabalho acabado, quando me apercebi de súbito na parede dum quadro duma extraordinária beleza, brilhando dum raio interior. Fiquei interdito, depois aproximei-me do enigma, em que não via mais do que formas e cores e cujo conteúdo me permanecia incompreensível. Encontrei rapidamente a chave do enigma: era um quadro meu que eu tinha dependurado ao contrário na parede."

"Regard sur le passé" (Wassily Kandinsky)


Há nestas palavras uma revolução. Kandinsky diz que aprendeu a ir mais longe do que o objecto representado pela pintura, objecto que, desde Cézanne, tinha entrado num processo de desagregação.

A arte abstracta é este abandono da imitação das formas que são por nós percebidas enquanto as ligamos a um objecto.

O quadro ao contrário, ele próprio, uma vez percebido o erro de orientação tinha-se de novo "colado" ao objecto, era o objecto, mas ao contrário.

Kandinsky nunca mais voltou a encontrar a impressão inicial.

Iludir o Argos do sentido e encontrar, por assim dizer, a impressão nua é quase um trabalho pítico.

Por isso, foi sempre mais fácil partir do acaso e pintar numa estratégia de fuga em relação ao objecto.

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