terça-feira, 15 de abril de 2008

A LÁPIDE NA CATEDRAL


Fénelon (François de Salignac de la Mothe -1651/1715)

"Vivendo bastante retirada em Combray num imenso jardim, para ela nada era demasiado doce e sujeitava a um adoçamento as palavras e os próprios nomes da língua francesa. Achava demasiado duro chamar "cuiller" (colher) à peça de prata que vertia os seus xaropes e dizia em consequência "cueiller"; teria receio de violentar o doce cantor de Telémaco chamando-o rudemente Fénelon - como eu próprio fazia com conhecimento de causa, tendo por amigo mais querido o ser mais inteligente, bom e corajoso, inesquecível para todos os que o conheceram, Bertrand de Fénelon - e dizia sempre "Fénélon", achando que o acento agudo acrescentava alguma moleza."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


Este amigo, um dos modelos de Robert Saint-Loup, era de facto descendente do abade Fénelon, autor do "Télémaque".

É a única vez, se acaso não me engano, em que Proust, o homem de sociedade, se sobrepõe ao Narrador. Bertrand de Fénelon não faz parte da galeria das personagens da "Recherche", a não ser através do seu avatar Guermantes, como ele morto na frente de guerra em 1914.

Desatenção do autor ou deliberada intrusão da biografia por impulso de generosidade?

É como se no meio da sua catedral, Proust, infringindo a lei do romance, colocasse uma lápide com o nome do amigo muito querido.

Mme. Pinson, pelo seu lado, é uma personagem que, com o seu gosto de modificar a língua, ganha um estatuto quase geográfico. A operação plástica a que o povo duma determinada região sujeita a língua nacional aparece aqui como função desta dama de outros tempos esquecida no seu jardim de Combray.

E esta é uma ideia parecida com a da descoberta das fontes.

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