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De Miragaia |
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George Steiner |
"Para ele (Wallace Stevens), como para Schopenauer, 'a realidade moderna é uma realidade de descriação'."
(George Steiner)
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Le Quatrième: Duceppe - La Cerisaie, d'Anton Tchekhov |
Cupido
"Poros, o Caminho, a Superabundância, filho da Sabedoria... Após o festim, a Miséria veio mendigar, como se faz em dias de festa, e deixou-se estar perto das portas. Poros, ébrio de néctar, entrando no jardim de Zeus, pesado, adormeceu. A Miséria concebeu o propósito, devido à sua pobreza (aporia), de ter uma criança de Poros. Estendeu-se perto dele e concebeu o Amor."
"O Banquete" de Platão (citado e traduzido por Simone Weil em "A Fonte Grega")
Poros, que "ama a sabedoria, porque nasceu de um pai sábio e hábil", não se aproxima da Miséria, nem está sóbrio quando o Amor é gerado.
Simone vê nesta figura de Poros um dos nomes de Deus. Não é Poros que age, porque, na sua perfeição, não sente qualquer necessidade. A acção é toda da Miséria, a quem tudo falta, e o fruto dessa união é uma criança, que anda pelo mundo, sempre carente e andrajosa, "pela natureza da sua mãe".
Ratzinger terá dito que o vinho é o símbolo da superabundância e da alegria, tanto como o pão, para o homem, o é da necessidade.
Mas a perfeição parece difícil de suportar e Poros embriaga-se. Pelo que essa perfeição parece demasiado humana.
Por outro lado, se a herança materna é a pobreza, pelo pai, o Amor deverá ser sábio e hábil, conhecendo o valor da alegria.
Aí está como a figura de um Cupido traquina e de olhos vendados não pode representar bem este mito.
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De lens van Spinoza (Spinoza's Lens) | Jewish Historical Museum |
É a felicidade a própria virtude, como queria Spinoza? Certamente, mas não é uma ideia fácil, porque se confunde depressa o egoísmo e o prazer com a felicidade. O homem que dorme no pedestal da estátua comunica quase sempre tristeza (o que pode irritar, também, a indignação, porque não gostamos de ficar tristes). A criança que pede esmola dispensa angústia como o olhar do animal que se abate. Dessa força dos signos do sofrimento e da miséria, tiram muitos a sua salvação.
Pode imaginar-se o espectáculo do último pobre, ou do último sofredor, condenados por qualquer lei inexplicável a essa diferença irredutível. E bastaria isso para ver que toda a riqueza e toda a felicidade dependeriam do privilégio negativo desses homens. E se eles não existissem, haveriam de erguer-se templos em cada cidade e em cada casa à sua figura divina. Sem dúvida que era sob essa forma que todos preferiríamos que existissem. Por isso a ideia da igualdade tem um limite simbólico.
Mas a realidade é bem outra: antes de sermos injustos para os outros, somos injustos para nós mesmos. Daquilo que é sentido como uma necessidade inexorável todo o homem sabe tirar partido. O verdadeiro mal, porque é íntimo e divide o ser contra si próprio, é o que se atribui à vontade e à liberdade humana.
Que a liberdade se pode prezar mais do que o conforto provam-no povos inteiros e cada um de nós, nos melhores momentos da nossa vida. Não é verdade que os ciganos recusaram a integração, mesmo em troca do 'socialismo' – promoção bem real para eles, apesar de tudo? E não preferiram sempre os judeus a sua cidade em ruínas à protecção e à ajuda de Roma para a construir de novo? Adriano não compreendia esse orgulho inflexível dos israelitas.
Era o poder que o transtornava. Também ele persistia, como os novos sonhadores da unidade humana, em fazer os homens felizes à força.
William Etty
"Jeanne d'Arc fait une sortie depuis les portes d'Orléans et repousse les ennemis de la France"
"O que é uma pintura do tempo, o espírito ininteligente destes doutores, a sua cega adesão à letra sem ter em conta o espírito, é que nenhum ponto lhes parecia mais grave do que se ter vestido como um homem.
Censuraram-na, porque segundo os cânones, aqueles que mudam assim o hábito do seu sexo são abomináveis diante de Deus."
"Jeanne d' Arc" (Jules Michelet)
A distinção entre a letra e o espírito já existia na condenação evangélica do fariseu. Mas não importa a antiguidade, visto que cada época tem o seu modo de cair no mesmo erro.
É compreensível que o travesti, no século XV, fosse visto como um acto de rebelião contra o catálogo estabelecido por Deus. Enquanto que para o historiador romântico o que contava era a consciência.
Jeanne, ao vestir como um homem, não tinha mudado de hábito no coração.
"O tremendo empreendimento começou em Maio de 1508. O primeiro plano era o de simplesmente representar as figuras dos doze apóstolos nas lunetas e preencher o resto do espaço com decoração ornamental. Bramante tinha erguido um andaime na capela, e vários pintores com experiência na pintura a fresco foram trazidos de Florença. Já dissemos que Miguel Ângelo só sabia trabalhar sozinho. Começou por declarar que o andaime de Bramante era inútil e substuíu-o por outro da sua invenção. Quanto aos pintores florentinos que Francesco Granacci tinha recrutado para ele, Giuliano Bugiardini, Jacopo di Sandro, o mais velho dos Indaco, e Agnolo di Donnino, 'tomou-os de ponta' e mandou-os embora."
Romain Rolland
("Vie de Michel-Ange")
Bramante tinha urdido a teia para favorecer o sobrinho, Rafael. Contava que o mestre recusasse a tarefa que lhe fora cometida pelo papa, indispondo-se com Júlio II, ou se saísse mal, porque sempre dissera que não sabia de cores.
Era não contar com o orgulho e a auto-confiança de Miguel Ângelo. 'Não sabendo de cores', fez uma escultura a duas dimensões com as cores que podemos imaginar na escultura helénica. Os frescos da Sistina renovam toda a pintura do Renascimento, por causa desse ponto de partida.
A 'conversão' e o trabalho de andaime exigiram tudo de si. O que nos pode parecer orgulho ou vaidade é, afinal, uma das condições para a entrega do artista ser total e se reconhecer todo na sua obra.
É um dos casos em que a falsa humildade seria, realmente, frivolidade.
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Auto-de-fé em Lisboa |
"(...) porque esse é o costume da nossa nação, elogiar com tal demasia, ou censurar com tal excesso, que em coisa nenhuma merecem crédito."
Luís António Verney
Um dos 'estrangeirados', em Roma, refere-se ao nosso carácter, em termos tais que a ideia podia ser transposta para os nossos tempos. Com uma reserva: livrámo-nos da adulação e do servilismo. Bem sei que alguns evocarão a cimeira das Lages, antes da agressão ao Iraque, ou o episódio do avião do presidente boliviano para demonstrar precisamente o contrário.
Se autores como Corneille e Molière, em troca da protecção real, eram 'obrigados' a desfazer-se em curvas, podemos compreender que outros absolutismos exigissem o mesmo. Nem sempre com o espírito de Pascal, que fazia a vénia com o chapéu apenas, e a outro chapéu.
De qualquer modo, o que eu diria constante, através dos tempos, no carácter nacional é o "escárnio e o maldizer". Veja-se a assembleia de deputados, tão confortável no seu papel de 'atirar pedras aos telhados de vidro dos outros'. Em certos partidos isso já nem é crítica, mas cerimónia. Surpreender os outros entra inequivocamente na má-educação. Por isso, o mais cerimonioso é o que é 'sempre igual a si mesmo'.
A crítica, aliás, é um termo que não se devia usar no que toca aos costumes destas assembleias. É mais pertinente dizer 'demarcação'. A coincidência de opiniões é fatal para os partidos.
Por isso, acho que o 'consenso' que se diz que o presidente procurava, só poderia vingar (adaptando uma célebre tirada de Manuela Ferreira Leite), suspendendo a partidocracia...por uns tempos.
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"She was feeling rather exposed" |
http://newslite.tv/2010/06/ |
Vi há dias na "Wildlife Tv" o que parece ser um novo passo na nossa compreensão das espécies selvagens.
A organização percebeu que dentro em pouco nem as crianças acharão graça às simples filmagens e às habituais cenas de violência animal. Os mais velhos, por sua vez, começarão, porventura, a pensar que as explicações de Sir David Attenborough estão a passar de moda. O meio está exausto e precisa de um 'uplifting' urgente.
A 'Wildlife' apareceu então com a ideia de tirar partido do digital para simular o que se passa no interior do bicho. Vemos, assim, por exemplo, a caveira ou a coluna vertebral, em momentos decisivos, como a corrida da chita ou a trituração de um esquilo na maxila alargada de uma serpente.
O espectáculo fascina, mas não deixa de ser chocante pensar que esta 'curiosidade' não é mais do que isso, e que o animal, acossado nas suas reservas naturais, depende desde há muito tempo desse tipo de 'voyeurismo' de que a televisão e o turismo fizeram um negócio muito rentável.
A digitalização vem lembrar a precariedade desse elo com a sobrevivência de tantas espécies. Doravante, o 'verdadeiro' animal selvagem é aquele que podemos 'dissecar' em imagens computacionais, como se esses seres fossem tão-só um pretexto para o nosso interesse supostamente didáctico.
Estamos, muito provavelmente, em vias de migrar de sistema de simulação, como diria Baudrillard. Os animais vivos no seu habitat serão, dentro de pouco tempo, muito menos interessantes do que as imagens das suas imagens.
Medina Carreira fala sempre em demonstração, quando apresenta os gráficos que, apesar disso, todos os ministros tinham obrigação de conhecer, não menos do que os economistas. Não menciono os partidos (ou os seus chefes) porque são, sobretudo, máquinas eleitorais, como se viu com a já célebre lista de Seguro.
É evidente que, em palavras, se pode negar a própria existência dos credores. E isso dá até imenso jeito quando se foge das responsabilidades como o 'diabo da cruz'. Medina tem razão. O PS agradece a 'ostracização' a que, desde o início, foi votado pelo governo de Passos Coelho. Toda a esquerda agradece.
Mas voltando à demonstração de MC. A economia vista através de um balanço (que ficaria muito bem em 'Power Point',) não deixa dúvidas nenhumas. E o professor "põe o nome às vacas": a tão propalada 'reforma do Estado', sem a qual 'não vamos a lado nenhum', é, principalmente, um corte profundo nas pensões.
Não adianta atacar a frente económica (como apregoa o PS e até uma grande parte dos partidários do governo), nem "escavar mais o buraco" (feliz expressão de Sócrates Menor), cortando nas despesas. Isto é, os únicos cortes 'produtivos' são os que se puderem fazer nas pensões da grande maioria dos reformados. Mas isso não é poupar na despesa, é cura, é cauterizar a ferida aberta pela demagogia partidária, com particular relevância para o PS. (MC não chega a dizer tanto, mas a coluna das pensões e dos anos em que 'descolaram' é eloquente).
O estudo refere-se à última década. Se aplicássemos a mesma contabilidade ao início do regime democrático, veríamos que o mesmo 'irrealismo' presidiu ao chamado regime das domésticas, ao alargamento dos benefícios e à criação do salário mínimo. Qualquer contabilista poderia carimbar esse programa de despesista e anunciar para mais tarde, o encontro com a 'realidade'. É verdade que não falta quem veja só isso no "25 de Abril".
Medina não disse que a Segurança Social tem vindo a ser a almofada desta crise e das outras crises. Alguns dos problemas da indústria e dos serviços, o défice de organização e de produtividade das grandes empresas, foram resolvidos através de 'reestruturações', cavalgando-se umas às outras, sempre com a suavização dos custos sociais pela Segurança Social, e isto desde o início, com todos os partidos do 'arco' no governo. Era bom, decompor essa coluna amaldiçoada para ver o que está lá dentro e a respectiva história.
Medina abstém-se de falar sobre a envolvência internacional dos nossos problemas, a não ser para dizer que os tempos não nos são favoráveis, porque a própria Europa está em crise.
Mas que sentido tem emagrecer e perder a saúde só por simpatia com a doença histórica dos alemães que ficaram traumatizados com a inflação nos anos 20 do século passado? Nada nos garante que não morreremos da cura, embora, talvez, "sem dever nada a ninguém", íntegros, mas falidos de vez. Infelizmente, não temos o 'espírito do protestantismo'.
A alternativa não é viver à custa desse povo industrioso e organizado, como gosta de ser vista a nação alemã, porque também eles dependem dos outros países e dos seus mercados. Não queremos os seus traumas, nem o seu dinheiro, queremos que e a 'União' Europeia assuma o seu projecto.
Aos gráficos de Medina Carreira faltam a política e a ética que são a componente que faz da economia política uma 'arte' imprevisível. Não é permitido extrapolar. Afinal, nenhum professor de economia ou de finanças previu a implosão da URSS ou a crise dos 'subprime'...
Em suma, por que é que só temos na televisão opiniões como a de um Medina Carreira que quer provar mais do que pode, e nos promete "sangue, suor e lágrimas" para ganhar uma guerra de outros? Por que não vemos, também, alguma coisa como isto? A verdade é que o medo prende mais a audiência. O professor fala em 'Deve e Haver' que qualquer dona de casa compreende. João Pinto e Castro, e outros como ele, não conseguem o milagre de apresentar com igual simplicidade o que é a complexidade mesma da história e da política. Quando as coisas se complicam, a nossa atitude natural é arranjar uma teoria mais simples para ficarmos com a ideia de que estamos 'informados' e de que 'sabemos'. Medina Carreira especializou-se em gráficos (sem 'Power Point'), é amavelmente truculento, e oferece-nos um mundo muito mais compreensível.
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http://www.timeshighereducation.co.uk/421005.article |
"(O parlamento eleito) não representa o povo e a opinião deste, mas tão somente a influência que vários partidos (e a propaganda partidária) tiveram no eleitorado no dia das eleições. E isso torna mais difícil que o acto eleitoral seja o que podia e deveria ser: um dia em que o povo julga a actividade do governo."
Karl Popper
O filósofo da 'sociedade aberta', como vemos, nāo tem ilusões sobre a representatividade dos governos em democracia.
Mas o fundo da questão é outro. Mesmo que não houvesse qualquer desvio da 'vontade popular' pela propaganda dos partidos, esse estado da opinião poderia perder actualidade logo no dia seguinte às eleições.
Para além do 'bicho de sete cabeças' que é saber em que consiste a vontade popular (a dificuldade permite todos os expedientes possíveis, mesmo o de não consultar o 'povo soberano' em decisões cruciais - a Comunidade Europeia tem o catálogo mais actualizado, procedendo, na prática, como se o 'soberano' fosse, de facto, incompetente para decidir dos seus próprios interesses), existe o problema de não termos qualquer antecedente de uma democracia sem partidos. Se eles capturam necessariamente a 'vontade popular' e, por norma, põem os interesses da organização acima do interesse nacional, temos de procurar a legitimidade das eleições não na representatividade, mas nas convenções políticas. É democrático o regime que permite as liberdades, tão menosprezadas por Marx, e um governo que possa governar.
Aceita-se, ao mesmo tempo, que a representatividade, em vez de literal e actual, seja 'simbolizada' no acto único das eleições periódicas. Como diz Popper, a vantagem da democracia é poder mudar de governo 'sem derramamento de sangue'.
Antes da democracia digital, em que um 'like' poderá manter actualizada a 'vontade popular', é, talvez, o melhor que se pode fazer. Embora se tenha de ter em conta o outro lado da questão: é que nenhum governo político poderia funcionar nesse tipo de democracia 'facebook'.
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http://thefourohfive.com/review/article/bleeding-heart-narrative-bison-ep |
Roland Barthes (1915/1980)
"Ficção de um indivíduo (qualquer Sr. Teste às avessas) que abolisse em si próprio as barreiras, as classes, as exclusões, não por sincretismo, mas apenas por libertação desse velho espectro: a contradição lógica.
(...) Este homem seria a abjecção da nossa sociedade: os tribunais, a escola, o asilo, a conversa mundana, transformá-lo-iam num estranho: quem é que suporta sem vergonha a contradição? Ora este contra-herói existe: é o leitor do texto, no momento em que experimenta o seu prazer."
"O Prazer do Texto" (Roland Barthes)
A leitura do texto não é a leitura com vista à informação ou à erudição. É inútil. É perversa ( o prazer é a-social, diz Barthes). Corresponde a um desvio da ferramenta, só pelo gozo disso.
Nesse acto, isolamo-nos, prescindimos soberanamente dos outros e, com isso, são as regras do diálogo e da comunicação que ficam suspensas. Os autores são chamados a um simpósio onde não existe a preocupação de qualquer unidade ou lógica, em que os tópicos da saúde e da política perdem toda a actualidade e nenhuma lei se faz sentir.
Em que "se faz entrever a escandalosa verdade da fruição: que ela poderia ser, se abolíssemos todo o imaginário da fala, neutra."
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http://joris1810.e-monsite.com/album/diaporama/2/ |
"Era óbvio que os lucros obtidos nâo passavam de dinheiro emprestado pelo destino, com um prazo de devolução aleatório."
(Nassim Taleb, "O Cisne Negro")
No casino-casino, o 'dinheiro emprestado pelo destino' é quase sempre devolvido pelos viciados no jogo. No casino da alta finança, é também devolvido, mas não pelos que arrecadaram os lucros ou se locupletaram com os bónus milionários em empresas que já à altura estavam, com toda a probabilidade, falidas (se não estavam à altura, o 'destino' condenava-as num futuro próximo).
É que estes jogadores descobriram, entretanto, que podiam também ganhar dinheiro com o seguro dessas 'chicuelinas' com o destino (como nos famosos 'swaps').
O cinema americano, nos anos setenta, mostrou-nos como a mudança dos costumes estava a aplanar o caminho do capitalismo. Nesse tempo, a troca de casais por uma noite ou um fim de semana era o último grito da 'revolução sexual'. Na verdade, era mais um pedaço de muralha que desabava no sistema geral da mercadoria, como diria o profeta de Trier.
Agora, pareceu normal aos economistas do casino que quem 'faz o mal e a caramunha' possa fazer a maioria dos contribuintes pagar por isso, graças à completa subversão da instituição seguradora.
Pode ser passada a certidão de óbito do investidor que 'arriscava para petiscar'. Os grandes investidores são demasiado grandes para correr riscos. Com o definhamento da industria no Ocidente, é o jogo financeiro que dita a lei, mas com guarda pretoriana.
Quando 'os mercados' nos acusam de 'gastar o que não temos' dão prova de grande cinismo. Afinal, não temos porque eles é que ganharam a guerra financeira que nos empobreceu.
Os americanos, no fim da Segunda Guerra Mundial, foram capazes de ver para além do Potomac, o rio da sua aldeia, e reconhecer o interesse americano na reconstrução da Europa. Os seus sucessores e os sucessores dos 'assistidos' na altura parecem pensar que encontraram a fórmula para ganhar sempre, fazendo do seu umbigo o centro do universo.
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Le Spectre de Vermeer de Delft, pouvant être utilisé comme table (Salvador Dali) |
"O consenso é apenas um estado das discussões e não o seu fim. Este será mais a paralisia."
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WWZ Guerra Mundial |
Santo Hilário
"A palavra grega que foi escolhida para expressar esta misteriosa semelhança (a do Pai e do Filho na Divina Trindade) tem uma tão estreita afinidade com o símbolo ortodoxo, que os profanos de todas as épocas ridicularizaram as arrebatadas disputas que a diferença de um simples ditongo suscitou entre os homoousianos e os homoiousianos."
"Declínio e Queda do Império Romano" (Edward Gibbon)
Gibbon refere-se à controvérsia ariana sobre a consubstancialidade, que levaram Santo Hilário a lamentar-se de que "todos os anos, não, todas as luas, estabelecemos novos credos para descrever mistérios invisíveis", e que foi temporariamente dirimida no Concílio de Niceia (325).
A "diferença de um simples ditongo" escondia, de facto, uma questão filosófica que não foi esclarecida pelo Concílio. E Gibbon conclui que o "mistério incompreensível que suscita a nossa adoração se furta à nossa indagação."
Mas não importa, o perigo para a unidade da Igreja fora afastado pela decisão a favor da doutrina duma única substância divina.
A história deste debate público foi naturalizada pela doutrina, e é como uma marca de crescimento, espiritualmente inerte, como um nó no tronco duma árvore.
E se, de tempos a tempos, alguém nos vem despertar do "sono dogmático", é então que percebemos que o passado e as coisas que nos rodeiam são o dogma e a verdadeira esfinge.
"Shane" (George Stevens-1953)
Compreendo o que continua a seduzir nos bons westerns: é como em Homero. Mas o cristianismo passou por aqui. A maldade não existia no grego. Eram as paixões dos deuses que enfureciam os homens e os entregavam a um destino inelutável.
Mas há uma fatalidade na mitologia americana que é a do espaço. A natureza cerca homem e cavalo sob a forma da distância, da fome e da sede, ou do índio hostil e incompreensível. O desfiladeiro, lugar da emboscada por excelência, transporta-nos à situação de Ulisses entre Cila e Caríbdis. A aventura é exterior, longe da casa e da segurança. O cowboy, como o guerreiro, não sabe o que é o dia de amanhã. As certezas domésticas, os ritos da casa são coisas para lembrar diante do fogo. As saudades do país ou do rancho que ainda não se tem povoam os momentos de repouso e as confidências. O sexo está ausente deste universo viril.
É um belo movimento o do cavaleiro e da sua montada. Eles formam um par cheio de sabedoria. Não era Chiron, o mestre de Aquiles, um centauro? A hesitação e a dúvida não são estados equestres. Montado, o homem sabe para onde vai, e a extensão da planície não perdoa divagações. Uma necessidade nua porque o homem não conhece o conforto. O sentimento de que o animal e a terra são as únicas riquezas. Tudo prepara o futuro leitor da Bíblia para a frugalidade e a religião. Em todo o cowboy há um camponês desesperado. Anunciar a morte dum companheiro pode ser encontrar um rancho e uma viúva bonita. Mas a Sierra Madre espreita os ladrões do ouro das suas entranhas.
O homem é um ser que depende de tudo: do seu cavalo, do fogo, da sombra da árvore, do riacho, da sorte, enfim. O western dá-nos uma figura sem história. O bandido é aquele que perdeu o sentido das coisas e segue um chefe que o arrasta para a forca. No meio desta loucura há um homem forte que desafia as leis da sobrevivência, iludido pelo medo dos outros. O bando é uma sociedade que se enche com o seu próprio discurso, e se alia a uma natureza aparentemente cúmplice. A caverna dos ladrões de gado só tem pensamentos de insegurança. O próprio do fora-da-lei é deixar-se apanhar pela imaginação, antes dum adversário tranquilo e civilizado pelas mulheres lhe deitar a mão.
O duelo final entre o herói e o vilão deve deixar bem claro de que lado estão os deuses. À diferença da tragédia e dos poemas homéricos, o western é moralista. O lado do bem triunfa sempre. Mas não sem que se ofereça ao espectador um comentário pragmático: o herói usava uma pistola de oiro ou era melhor atirador. Não importa. O nosso mundo tão cheio de defesas e de artifício é um anti-western. Temos quase a sensação de que o homem pode viver sem paixões, com uma ou outra fuga de pressão.
Perante o filme de cowboys, descobrimos uma idade de ouro que é também a infância de cada um. Tudo se começa a dividir pelos nomes que a nossa mãe põe às coisas e às pessoas. Os bons e os maus são a primeira lição de moral. E o adulto, quantas vezes não tem de regressar no tempo para compreender?