Nesta revisitação a Antonioni, reconheço a verdade das palavras de Proust quando disse que o artista verdadeiramente original é como o oculista que nos coloca as novas lentes e pergunta: - E agora vê?
Pois passados tantos anos sobre a primeira visão de "Deserto Vermelho", só posso dizer que aquelas lentes são as que uso desde então.
Agora, é justa a lentidão deste cinema, os diálogos frustres e inacabados, a música que está lá, mas não se ouve, a omnipresente arquitectura, como aqui, as chaminés, as tubagens, as máquinas, os armazéns que se apropriam da paisagem enevoada dos arredores de Ravena, com a sua estridência e os silvos de uma vida automática, como a do robot que faz de sentinela no quarto da criança adormecida.
Este mundo sem vida, este deserto, é denunciado pelo transtorno psíquico de Giuliana (Monica Vitti). Depois do seu acidente, perdeu o talento da adaptação que nos outros os faz encolher os ombros e seguir em frente, conformados com o artifício.
Mas ela tem muito viva dentro de si toda a poesia de uma ilha de águas transparentes em que até as rochas cantam misteriosamente.
A razão da sua esquizofrenia é que não consegue encontrar nos outros um eco dessa memória infantil. Os outros transformaram-se na feia realidade do fumo amarelo das chaminés que as aves aprenderam a evitar por causa do seu veneno.
Ela diz a Conrado (Richard Harris) que levaria para onde quer que fosse tudo o que amava e, sendo assim, para quê mudar de lugar?
O problema é que precisa dos outros para não enlouquecer. E até o filho, ao fingir uma paralisia, a destitui do seu papel de mãe sacrificante.
Na cena da cabana, isolada nos pantanais envoltos em nevoeiro, o promíscuo grupo de burgueses, para escapar ao tédio, e a pretexto do frio, lança-se alacremente na demolição duma parede para alimentar o fogo, e temos uma das imagens mais poderosas de naufrágio.
Giuliana parece extrair uma moral do que lhe acontece: aquela é, afinal, a sua vida, é o seu dharma.
E no final vemo-la com a criança, do lado de fora da fábrica, com as ominosas chaminés a cobrir o céu, tal como no começo do filme.
1 comentários:
Vi muito cedo. Revi mais tarde. Havia de o reviver agora. Mas ficou-me, sim, a desconexão do vermelho, fumo e vida, da solidão desamparada que transporta o real para o imaginário. "E assim, vê?" é por demais exacto. Abç
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