terça-feira, 31 de julho de 2012
ANTES DA REVOLUÇÃO
Soljenitsyne no seu "Lenine em Zurique" faz
justiça ao grande líder?
Pergunta ociosa porque se trata de literatura. Sentimos
que os traços principais estão lá. O anedotário histórico. As decepções, as
intrigas, e sempre a vontade que, mesmo através da doença e da prostração,
escava o seu túnel para a luz. O seu juízo, duro e sem nuances, sobre os companheiros
de exílio, a sua dependência, para alguns surpreendente, da Krupskaya.
Talvez o autor pretendesse ser mais 'objectivo' do que
parece ser. Mas as facetas que mereceram a atenção da sua escrita não enganam.
Podia-se dizer, contudo, o mesmo de qualquer biografia, e sobretudo das autorizadas...
Uma hagiografia encontraria o seu caminho com os mesmos
elementos e os mesmos factos. Soljenitsyne não fez um requisitório (longe
disso). Parece preocupá-lo mais deixar a dúvida sobre as famosas qualidades
'carismáticas' (que, como acontece nestes casos, são sobretudo 'post-mortem') e
a sua antevisão do futuro ( que, realmente, se pode comparar, numa situação
completamente diferente, à de Allan Greenspan, à frente da Federal Reserve Board.
Se não adorarmos, é fácil conciliarmo-nos com uma
perspectiva que põe o homem no seu lugar.
segunda-feira, 30 de julho de 2012
CATÃO
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Marco Pórcio Catão (234/149 AC) |
"Nunca um homem está mais activo do que quando não
faz nada, nunca está menos sozinho do que quando está com ele mesmo."
(atribuído a Catão por Cícero, citado por Hannah Arendt)
Parece que a perfeição do indivíduo está muito para trás
de nós... Mas essa ideia paradoxal da acção 'imóvel' e da sociedade 'interior'
foi uma das premissas do espantoso desenvolvimento do Cristianismo.
Essa perfeição (porque tudo o que é perfeito 'chegou ao
fim') deu lugar a um outro indivíduo, exterior, 'tributável', como diria o
Álvaro de Campos, que está na origem do moderno individualismo, quando a acção
se passou a julgar pelos resultados práticos e o diálogo do 'dois em um'
(Arendt) caiu na irrelevância das opiniões.
Essa transformação é o principal da democracia. Implica o
fim do sagrado e da hierarquia do mundo religioso.
Platão, que era um aristocrata, via nisso uma absoluta decadência.
Karl Popper, reconhecendo nele o primeiro dos filósofos, acusa as suas ideias
de envenenarem a nossa política e a nossa apreciação da liberdade. Mas, sem
dúvida, que o mesmo juízo deve estender-se ao 'veículo' religioso dessas
ideias: a tradição estóica e a do Cristianismo.
Porém, o oxímero de Catão continua, ainda hoje, a fazer
sentido.
domingo, 29 de julho de 2012
PERGUNTAS E RESPOSTAS
"Descreditar o motivo da pergunta é sempre melhor do
que responder-lhe."
"The Anti-Death League" (Kingsley Amis)
Embora uma resposta pareça sempre mais civil e, no comércio,
se use o aforismo de que toda a carta merece resposta (nem que sejam só
'palavras a abater'), na política, não responder, quando isso é possível, é uma
posição mais forte do que ser obrigado a responder, mesmo que seja uma resposta
'ao lado'.
Ora, o silêncio, neste caso, equivale ao que Kingsley
chama de 'descreditar o motivo' da pergunta.
Num confronto televisivo, por exemplo, são várias as
técnicas de iludir uma resposta (responder 'por atacado', em vez de 'ponto por
ponto' é uma delas, sendo, geralmente o privilégio do último a falar), ou de
'dizer algo' sem qualquer pertinência para o caso, mas que tem a vantagem de
não se parecer 'encostado à parede' pelo adversário. É por isso que a televisão
não favorece o 'descrédito dos motivos' pela explícita não resposta. Tem de se
'salvar as aparências' de que é 'pelas palavras que os homens se entendem'.
Quando, a eficácia das palavras não é menor para criar e
manter o desentendimento...
Os partidos (e essa é uma consequência de serem
organizações com os seus fins próprios, não derivando da doutrina, como dizia
Simone Weil) são especialistas nessa actividade de desacreditar os motivos dos
outros e de praticarem, por sistema, a não-resposta.
sábado, 28 de julho de 2012
A ARTE E A NATUREZA
"As obras da Natureza parecem-nos tanto mais
agradáveis quanto mais se assemelham às da Arte."
(Joseph Addison, citado por Alain de Botton)
Não é nada óbvio que um jardim seja uma forma de vermos a
natureza 'aprisionada'. Porque o jardim é o contraponto do ambiente utilitário
e artificial. Deixemos essa ordem de flores de plantas entregue à entropia, e a
floresta volta. Volta de duas maneiras: como a ideia romântica do estado
selvagem e como desordem não-humana.
Os 'postais turísticos' tornaram esses lugares
inacessíveis (como o 'design' do sexo em revistas e filmes tornou o corpo
inacessível). Recebe-se em troca a saciedade.
Só a arte pode vir em socorro desses paraísos exaustos, o
do corpo e o da natureza. A sofisticação da experiência é o preço a pagar pela
'posse' da natureza. Ainda que essa ideia seja um 'sonho' da razão.
sexta-feira, 27 de julho de 2012
NARCISO
"O objecto amado é simplesmente o que partilhou uma
experiência ao mesmo tempo, narcisisticamente; e o desejo de estar próximo do
objecto amado não é devido num primeiro tempo à ideia de o possuir, mas
simplesmente à de deixar as duas experiências se compararem, como reflexos em
diferentes espelhos."
"The Alexandria Quartet" (Lawrence Durrell)
Era Lacan que dizia que não há relação. Narciso revê-se
nos espelhos e ama tudo o que devolve a sua imagem. Quando a opinião corrente
parece encontrar uma justificação para tudo no puro egoísmo, esta explicação do
amor não devia oferecer qualquer dificuldade.
Mas tudo depende de identificarmos o narcisismo com o
ego. E isso é o que não se pode. Não há qualquer 'interesse' nos motivos deste herói, filho de um deus-rio.
Aliás, a sua atracção por si próprio ( ou pela sua imagem ) é um castigo de
Némesis que lhe há-de provocar a morte. Como se vê, todo o contrário do egoísmo
que, até certo ponto, se deve considerar natural.
Tal como na grande obra de Musil, a paixão dum pelo outro
entre Ulrich e Ágata, na sua impossibilidade de ser 'concretizada', nos remete
para a morte como única perfeição da admiração mútua, Durrell, através da sua
personagem Justine, repete-nos que aquilo a que chamamos amor é uma precaução
contra a sentença de Némesis.
quinta-feira, 26 de julho de 2012
O PESCADOR NA REDE
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Gottlob Frege (1848/1925) |
"Vê-se uma coisa, tem-se uma representação, apreende-se ou pensa-se um pensamento. Quando se apreende ou se pensa um pensamento, não se cria. Entra-se em relação com este pensamento, que já existia antes, e esta relação difere da maneira como se vê uma coisa ou se tem uma representação."
(Gottlob Frege)
O pensamento não é uma coisa. Um pensamento particular tem "por detrás" todo o pensamento e não é um verdadeiro objecto para quem pensa.
Há um modo de explicar Deus através desta relação de todo o pensamento com o pensamento. Porque também aqui funciona uma transcendência: a do que 'pensa' quando pensamos.
Porque é bom de ver que o pensamento não é a 'cloud' da Apple, uma espécie de arquivo suspenso donde nos viriam a informação e as ideias.
Heidegger criou o termo 'unbezüglichkeit' para designar a forma da existência 'autêntica', a qual seria não-relacional. O ser sem partes da linguagem é um pouco isso.
A rede das palavras não se distingue do 'pescador'.
terça-feira, 24 de julho de 2012
A MENINA IRENE
Irene Cahen d'Anvers (Pierre Renoir)
Tenho um poster da menina Irene, no meu quarto.
Pintou-a, no século XIX, Pierre Renoir.
O seu cabelo ruivo cai-lhe, como um xaile, sobre o ombro. Tem um laço azul, que parece um peixe, no alto da cabeça.
Do fundo sombrio – suponho que um jardim – sobressai o rosto, em que há a cor da juventude e a boca rubra. Mas, sobretudo, como se fizesse parte da folhagem, a cabeleira, com reflexos de sangue.
Que me pode dizer a futura baigneuse, tão inocente agora?
O lago instantâneo da infância onde mergulho. A saída de emergência do real.
Mas se imagino a forma voluptuosa, já peco de futuro e de não ser.
segunda-feira, 23 de julho de 2012
ZAMPANO E GELSOMINA
"La strada" (1954-Federico Fellini)
"La strada" é a história dum mistério.
Ninguém sabe por que é que o homem do peito de aço precisa da mulherzinha com cara de alcachofra. E menos do que todos ele, que a trata como a um cão.
No final do filme, na praia, chorará a sua perda sem pronunciar uma só vez o nome de Gelsomina. Como um destroço lançado pelo mar, a noite não lhe parece bela, nem se expande a sua alma ao olhar as estrelas. Morrerá, talvez, ali, prisioneiro da sua insensibilidade.
Esse amor que é causa dum ciúme que vai abrir as portas à tragédia é qualquer coisa que ele não pode compreender, que se recusa a pensar. Entranha-se, sem se dar a conhecer, no corpo rude do saltimbanco.
Mas também no campo estéril cai o orvalho.
Pura e luminosa, Giulietta Masina parece ela própria não ser mais do que um mensageiro até escolher o seu destino.
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