sábado, 1 de setembro de 2007

RIO BRAVO


"Rio Bravo" (1959-Howard Hawks)

Hoje, ao rever Rio Bravo, numa cópia em mau estado, verifiquei que a fraca definição da imagem me fez ver outro filme. As figuras não eram nítidas, as legendas tremiam, mas o som era distinto e envolvente. A voz de John Wayne nunca me pareceu tanto a do herói impoluto que comove pela paixão vencida, como uma espada. Mas Hawks soube torná-la cantante e significativa da amizade e do amor. Este actor consegue sair da estátua que o cinema lhe fez, a ponto da sua imobilidade e contenção de sentimentos serem o símbolo do épico. Compreende-se o desafio à inteligência do cineasta nesta rudeza que se quer a marca da humanidade sublime. Mas também segurança e resistência do tipo. Porque o bom western confina o estudo psicológico com o valor do símbolo. O sherife John T. Chance tem o passado que interessa à acção. E o seu romance com Feathers – a voz da Dickinson é o contrário da insensibilidade aparente do cowboy, é uma expressão da pele – parece um tempo musical, donde vai surgir a violência por contraste.

No western, todos os actores são actores de composição. A intenção moral da história obriga a um convívio com os heróis positivos. Dude, o bêbedo, é salvo pela rude confiança de Chance e pelo canto da morte representado na trompete mexicana: - Tinha-me esquecido porque me meti nisto! dirá, quando o velho Stumpy quer fechar a janela por causa da música. Colorado é o jovem atraído pela justiça que ganha a estrela de deputy. Walter Brennan, incomparável no papel do coxo tagarela, valioso pelos seus defeitos – é a sua teimosia e o gatilho fácil que permitem a Dude imaginar o seu estratagema -, mas capaz de surpreender todos pelas suas virtudes: em vez de aceitar o papel de inválido, apareceu no shotdown final a cortar a retirada ao bando de Burdette.

A verdade ética reduz a figura do bandido a um esboço sumário. É que seria demasiado fácil encontrar no inimigo do sherife as mesmas virtudes do herói e outra fatalidade. É justa, portanto, esta discrição sobre o mal. Dir-se-ia que Burdette e os seus homens apenas existem para realçar o heroísmo e a coragem de homens e mulheres comuns. A natureza nas suas fúrias também exalta o carácter, mas é outro cinema. Apenas o obstáculo humano explicaria uma história como esta, onde o que acontece podia ser doutro modo, em que o tempo não segue uma lei mecânica. Que arte consumada esta!

Depois da batalha, o homem sorri – sem aquela alegria feroz das ideias de dinamite. No quarto de hotel, Feathers quer fazer falar o cano ainda fumegante de John T. E ele só responde: - se desceres com essas meias, mando-te prender! Que verdade há nesta confissão de amor que toma as formas do ofício e da contradição!… Por isso Feathers lhe salta ao pescoço, compreendendo tudo, sem despir o herói. A cor e a nitidez talvez me tivessem demorado a imaginação.

Assim, os grandes traços explicados pela voz deram-me a experiência da encenação ideal. E será por isso que me espanta a visão que tive do filme no passado. É que agora eu tive que dar as minhas próprias ideias e achei um enorme prazer em estar de acordo com Hawks. Enquanto que a minha longa adolescência e a sedução das imagens me levavam por outro caminho.

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