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Allariz |
"Foi principalmente porque cada dinastia alcançou uma gigantesca concentração de tesouros artísticos que a herança chinesa repetidamente sofreu tais perdas massivas. A queda de praticamente cada uma das dinastias teve como consequência o saque e o incêndio do palácio imperial, e de cada vez, de um só golpe, a nata da produção artística dos séculos precedentes desvanecia-se em fumo. A espantosa dimensão destes desastres recorrentes está documentada em grande detalhe pelos registos históricos."
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D.H. Lawrence |
"Nunca confies no artista, confia no conto. A função própria do crítico é salvar o conto do artista que o criou."
"2001: a Space Odissey" (1968-Stanley Kubrick)
Quando Hal, o super-computador do filme de Kubrick, elogia os desenhos que Dave (Keir Dullea) fez dos seus companheiros congelados, o que é que vale esse elogio?
Sabemos que Hal tem um simulacro de alma nas velhas canções do país natal do seu criador que guarda na memória profunda, mas, justamente, é uma imitação.
A opinião superficial, recebida dos outros, que não é uma reacção do nosso corpo, nem um pensamento, vale tanto como o elogio do Hal 9000.
Não sabemos qual é a massa dessas opiniões, mas podemos adivinhar que, a exercer-se numa força integradora e direccionada, teríamos o equivalente a um cataclismo natural.
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(Jackson Pollock) |
(Génesis)
Chegou até mim um vídeo do chamado "Zeitgeist Movement" que pretende recolocar na ordem do dia a agenda de Marx, mais precisamente, a 11a. das suas 'Teses sobre Feuerbach'. Não se trataria de interpretar o mundo, mas de transformá-lo. Essa agenda apresenta-se reciclada e com alguma argumentação nova. Não se pode, por exemplo, confiar a uma classe em vias de extinção a tarefa revolucionária, e em vez da 'classe operária' o novo agente da História é a Tecnologia, a julgar pelo vídeo que circula na Internet. Ora, esse é um erro familiar ao próprio Marx. Se não interpretarmos, teremos de deixar o nosso destino nas mãos do novo agente revolucionário, a tecnologia, que, não é preciso lembrá-lo, é em parte determinada pelo deus Mercado e pelo que os autores chamam de 'Corporatocracy', o poder das multinacionais. Inclino-me para pensar, todavia, que a principal força da tecnologia é autónoma e anarquizante. A sua função não é tanto a de resolver problemas, como a de criar novos contextos para velhos e novos problemas.
O vídeo dedica uma primeira parte ao Cristianismo e à ideia de que a figura do Cristo é um mito e de que a Bíblia é um plágio de mitos mais antigos. Também aí estamos diante de um dos temas favoritos do marxismo, o da religião como 'ópio do povo'. Não me quero pronunciar sobre as teses de 'Dawkins et al.', mas sempre direi que a questão da historicidade de Jesus é pouco relevante e que os argumentos contra a verdade do Cristianismo, que é descrito como uma fraude, funcionam até 'a contrario', pois se se quer demonstrar que há histórias comuns nas diversas religiões, isso apenas abona o sentido de que ou são todas 'verdadeiras' ou são todas falsas. Diz Paul Ricoeur: "O mito, desmitologizado desta maneira pelo contacto com a história científica e elevado à dignidade de símbolo, é uma dimensão do pensamento moderno." A conclusão é que nem sequer conseguiríamos pensar sem a existência dos mitos e dos símbolos em que eles se transformam...
O tema da segunda parte é o que é considerado um mito moderno: o "11/9". Já conhecia a maior parte das objecções à explicação oficial e não há dúvida que são perturbantes, e mais ainda com a falta de vontade do governo dos USA para um esclarecimento completo. Mas, como entre nós, o 'Caso Camarate', as comissões de inquérito deverão suceder-se, a menos que, contra a ideia feita, a democracia americana se encontre bloqueada, a um ponto que nós nem sonhamos, e que essa democracia seja, de facto, desde há muitos anos, ela própria, um dos maiores mitos modernos.
A parte final é a mais convincente, ao descrever o mecanismo da dívida como o maior gerador do dinheiro em circulação, dinheiro que surge, assim, da atmosfera, ou do antigo éter, para enriquecer uns poucos à custa da humanidade. A economia global parece, na verdade, um império, tão prepotente como o dos Romanos ou o dos czares da Rússia esclavagista, mas por meios menos visíveis, quase subtis, em que a responsabilidade é diluída e quase impossível de chamar a juízo.
Em suma, muito 'pano para mangas', apesar de um certo tom de 'igreja nova' que mistura, na aparência, os temas de forma incongruente. Qual é a verdadeira 'agenda'? A religiosa, ou a anti-capitalista?
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A Revolução Cultural |
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Berghof, a Casa-Refúgio |
"Hitler impõe aos seus convidados (em Berghof) que acabem de comer o que está nos pratos e proíbe ao 'maître d'hôtel' de os levantar se neles subsistir qualquer alimento."
El gran paranóico - 1936 (Salvador Dali)
"A razão e a justiça são as grandes armas do paranóico. A sua razão e a sua justiça, porque o paranóico não está talhado para o Estado de Direito onde a razão se discute e a justiça está nos códigos."
"Como tornar-se doente mental" (J.L. Pio Abreu)
Aqui está uma declaração que faz da acção dos grandes reformadores uma espécie de paranóia.
Pode dizer-se que, alguns deles pelo menos, estiveram sempre receptivos à discussão e a respeitar as leis, tanto quanto lhes era possível.
Mas é a força da sua convicção, quando os potenciais aliados não sabem ou têm dúvidas, e o rasgo da sua visão do futuro, ao ponto de desafiar os códigos vigentes que faz o sucesso das reformas por que esses homens lutam.
Mas como "de médico e louco, todos temos um pouco", só podemos atribuir à sorte, ao encontro de uma tendência no indivíduo e dum estado do mundo, a sua situação própria, que um se torne completamente louco e que outro conduza a humanidade a um novo patamar do progresso.
" O único problema que hoje se coloca, porque da sua solução depende o destino da humanidade, não é um problema de regime político ou económico - democracia ou ditadura, capitalismo ou comunismo - é um problema de civilização [...] Será esta civilização feita para o homem, ou pretende ela fazer o homem para si, à sua imagem e semelhança, usurpando deste modo, graças aos prodigiosos recursos da sua técnica, o próprio poder de Deus? É isto que importa saber [...] Trata-se de saber se a técnica disporá dos corpos e das almas dos homens do futuro, se ela decidirá, por exemplo, não somente da sua vida e da sua morte, mas também das circunstâncias da sua vida, tal como o técnico da criação de coelhos dispõe dos coelhos da sua coelheira."
(Bernanos: Essais et Écrits de Combat;cit. P. Bernard Fixes)
Deve ser uma particularidade moderna pôr-se a questão da civilização que queremos. De facto, até hoje, nenhuma sociedade humana pôde alguma vez decidir a civilização que quer. É mais provável que tenha tomado partido por um regime em vez de outro, que de maneira nenhuma significa 'usurpar o poder de Deus', do que escolhido uma civilização 'feita à sua medida'.
A crítica de Bernanos é, de alguma maneira, o contraponto dos construtores de sistemas e dos 'engenheiros de almas'. Que se possa ter idealizado a sociedade sem classes e o processo histórico que fatalmente conduzirá a ela não é, na verdade um 'parti pris' por uma civilização superior, embora ainda no futuro. De facto, essa ideia pertence ainda à engenharia social. Este poder putativo de criar uma sociedade de raiz, ou sem qualqer espécie de continuidade com o existente é, como diria Alain, uma ideia operária. Compreende-se a máquina, na medida em que se é capaz de a montar e desmontar, logo a nova função 'revolucionária' é apenas uma questão de vontade.
Naqueles tempos, um certo radicalismo parecia pensar que a sociedade tinha sido construída a partir de um desenho (para alguns, de um comité de exploradores), em vez de ter crescido como um organismo vivo.
A metáfora do comité pode-se ainda aplicar ao caso do capitalismo financeiro, mas é óbvio que esse comité não sabe nada da natureza social, nem precisa de saber. Tal como o jogador do casino, a sua eventual competência é apenas estatística ou pavloviana (sabe como fazer salivar as suas vítimas).
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www.telegraph.co.uk |
Foz (José Ames)
"Quem vem e atravessa o rio" pela velha ponte de D. Luís, tem diante de si uma das mais belas cidades do mundo (digo-o sem bairrismo).
Mas quem palmilha as suas ruas encontra lixo, abandono e a demência dos graffiti à solta nas paredes.
O Porto é como uma bela para ver de longe, sem o confronto com os seus problemas de cancro da pele.
Por isso, haja alguém que cuide da cidade longínqua, porque a outra parece não ter remédio. Alguém sensível aos telhados arrombados e às lixeiras infames que se vêem do tabuleiro superior.
Sei bem que só estará atento a coisas como estas quem sinta que a cidade lhe pertence. Ora, ninguém tem esse direito. E os turistas, talvez se estejam nas tintas para os pormenores.
Lúcifer
"Tal como no furacão que varre a planície, os homens fogem da vizinhança de algum olmo gigante e solitário, cuja altura e robustez o torna tanto mais inseguro, porque é a melhor marca para os raios; assim perante essas últimas palavras de Ahab, muitos marinheiros correram para longe dele, apavorados."
"Moby Dick" (Herman Melville)
Nesta magnífica passagem, Melville dá-nos a melhor das parábolas sobre o orgulho humano.
A criatura que desafia o que a ultrapassa e se pretende medir com o que não compreende merece a solidão do olmo e o raio que o fulmina.
É ainda a história de Lúcifer, o anjo caído. Todavia, enquanto a árvore se fez tição e lenha, o anjo tornou-se senhor dum outro domínio.
É curioso pensar que neste mito, não há arrependimento, nem verdadeiro castigo, mas uma divisão do trabalho necessária.
Castigados, são todos os que vão parar às regiões inferiores, mas o senhor do lugar exulta com a máquina dos suplícios de que dispõe.
Porque alguém se tinha de encarregar do trabalho sujo, enquanto no Paraíso a corte canora passeia em círculos à volta do trono, como numa Versalhes celeste, foi preciso criar uma casta de intocáveis.
Contentes com a sua sorte, orgulhosos e cegos, como convém à justiça.
www.eveandersson.com/photos/photo-display?pho...
Na mundanidade há uma coisa que nos seduz a todos, homens sem fé: a precipitação numa ordem exterior, aceite universalmente. Preenchemos de tal maneira o tempo que ele nos falta para o essencial. Mas o essencial reduz o tempo a nada, à relação lógica sem significado para a verdadeira vida.
É surpreendente a capacidade da tecnologia para abolir as diferenças, quando aparentemente é um processo multiplicador. A afirmação marxiana de que o pensamento reflecte as condições de existência tem aqui a prova fulgurante na velocidade com que mudam as habituais referências e na mentalidade infantil do homem de hoje que a espelha.
Incapaz de pensar a mudança, segue o movimento fascinado, alienando uma parte cada vez maior da sua responsabilidade.
Katsushika Hokusai
" - Esta vaga, diz o velho, não esperou. Ingratos que nós somos! Este poder do homem, e mesmo de pensar, como é que se ousa descrevê-lo esquecendo a longa sequência dos trabalhos e das ferramentas?"
"Entretiens au bord de la mer" (Alain)
A onda não é nada em si. Tem todo o oceano que a empurra e o sol e a lua.
O instantâneo, a onda isolada, pertence ao conceito. Não há onda, como de resto não há milhões de gotas, nem biliões de átomos. Tudo isso é ordem que vem de nós, é o nosso fio de Ariana, que não muda o labirinto mas permite que nos encontremos.
Como ousamos, pois, esquecer os mortos e os vivos que nos empurram, que pretensão é essa de julgar que somos o ponto de partida de alguma coisa?
A ideia de que cada ser é exterior a si mesmo há-de ser sempre nova, sempre surpreendente e contra a experiência.
O facto é que não nos podemos ver a nós mesmos, nem escapar dos sistemas sem cair no caos.
"Talvez valesse mais dizer que um sistema fechado não tem propriedades; suponho que tal é a ideia escondida, à qual se vai às cegas e apenas por meio da técnica. Ao passo que o entendimento descobre aqui a indivisível relação." (ibidem)
A relação é entre a ideia do sistema e o mundo. Só que, como é natural, tomamos um pelo outro.
O antigo Seminário de Verrières
"Mas falam-nos desses artigos jacobinos; tudo isso nos distrai e nos impede de fazer o bem. Quanto a mim, nunca vou perdoar ao padre."
M. de Renâl em "Le Rouge et le Noir" (Stendhal)
O discurso da hipocrisia, hoje, não empregaria estes termos.
Todos se lembram do célebre: " - Deixem-me trabalhar!" e aí está algo de mais aproximado, sobretudo na sua descendência (porque creio que da primeira vez, terá havido um ingénuo desejo de não ser estorvado pela "política").
O maire de Verrières não quer mais do que o concurso de todas as forças locais para a glorificação do seu nome.
A palavra progresso estava ainda ensanguentada pela história recente, e Renâl, como conservador, só podia invocar o bem.
O progresso, hoje, parece servir a todos.
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Antero de Quental |
"Não sei: mas o que é certo é que não há sociedade, por decadente e inferior, onde a virtude não seja possivel: e, se a virtude é o fim último da vida, por conseguinte da sociedade, que não é mais que uma condição para que ela possa dar-se, direi que não há sociedade completamente perdida, completamente inútil, visto que o fim supremo nunca deixa de se realizar. A nós, espiritualistas e estóicos, deve bastar-nos isso. Sejamos nós os que perante o Universo justificam a sociedade em que vivem, por pôdre que ela seja.”
Antero de Quental (“Soldados da Revolução”)
Assim falava um socialista ('espiritualista e estóico') do século XIX. Para que precisava ele de um partido? Tratava-se da salvação individual da sua alma e não de se salvar 'de companhia', como diria Pessoa.
Hoje, confiamos a difusão da 'virtude' às organizações, elas próprias sujeitas aos vícios da burocracia e da corrupção.
Não importa, Antero não encontrara ainda o 'cavaleiro andante' dos seus sonetos ('com grandes golpes, bato à porta e brado'). Pensava que podia atravessar incólume o deserto do país, sem ao menos Sancho Pança, a 'ponte' com os outros da sua loucura.
Onde estão hoje os candidatos a cavaleiro andante? Às vezes, encontro-os nos blogues e noutros impasses...
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"The Power of Photography" |
"As máquinas são o novo proletariado. À classe operária já foi entregue a guia de marcha."
(Jacques Attali, citado por Jeremy Rifkin)
Chegará alguma vez esta profecia, esta 'provocação anti-marxista', a ser verdade, para além do mundo mais desenvolvido?
Vejo as fotografias que Marcus Bleasdale recolheu no leste da República do Congo, de crianças escravizadas nas minas donde provém o tungsténio e outros minérios necessários aos nossos 'tabletes' e 'smartphones', e parece-me que o mundo nunca chegará a ser um só, e que a chamada globalização será por uma eternidade ainda um eufemismo para a selvajaria das forças desencadeadas e para a não-racionalidade da economia financeira.
Se, nalguns países, uma parte da 'classe operária' já recebeu a 'guia marcha', para dar lugar ao numérico, como dizem os franceses, e à robotização, devemos ver nisso uma tendência imparável do progresso, e que é uma questão de tempo que o homem precise de confiar a outra coisa o sentido que tinha o trabalho na sua vida, ou uma oportunidade histórica de julgar os dois tipos de homem e as duas sociedades, presentes simultâneamente, numa contemporaneidade que não deixa de lembrar a do 'homo sapiens' e a dos últimos neandertais?
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"Jacob e o Anjo" (Delacroix) |
"A luta com Deus – Jacob tendo ficado só, alguém lutou com ele até ao romper da aurora. Vendo que não podia vencer Jacob, bateu-lhe na coxa, e a coxa de Jacob deslocou-se, quando lutava com ele. E disse-lhe: «Deixa-me partir, porque já rompe a aurora.»
"Jacob respondeu: «Não te deixarei partir enquanto não me abençoares.» Perguntou-lhe então: «Qual é o teu nome?» Ao que ele respondeu: «Jacob.» E o outro continuou: «O teu nome não será mais Jacob, mas Israel; porque combateste contra Deus e contra os homens e conseguiste resistir.» Jacob interrogou-o, dizendo: «Peço-te que me digas o teu nome.» «Porque me perguntas o meu nome?» – respondeu ele. E então abençoou-o. Jacob chamou àquele lugar Penuel; «porque vi um ser divino, face a face, e conservei a vida» – disse ele."
(Do "Génesis", Bíblia dos Capuchinhos)
Este que eu saiba é o único exemplo bíblico em que a força divina e a humana se medem num 'corpo a corpo'. Embora, no caso de Deus, através da figura do Anjo. Mas diz-se claramente que Deus não podia vencer Jacob e que mesmo depois da 'joelhada', o fundador de Israel podia impor condições ("não te deixarei partir, enquanto não me abençoares").
É tão estranho, tão incompreensível, este confronto que nos leva a procurar noutros mitos a origem desta 'enormidade'.
Concerteza que se pode ver no episódio da luta com o Anjo, um prenúncio do Cristianismo, mas aqui a encarnaçäo tem princípio, meio e fim, e vai até às últimas consequências, com a morte na cruz que deixa cada um com a sua fé e a igreja com a primeira pedra.
Quanto ao 'sonho' de Jacob, parece-me encontrar nele uma clara analogia com os contos populares. Por exemplo, com a história de Aladino e o génio da lâmpada. No fundo, é como uma astúcia de Jacob, que aproveita a presença de Deus no Anjo (dentro 'da lâmpada'), para o forçar.