
Baden Powell (1857/1941)

O filme de Al Gore utiliza talvez a linguagem mais apropriada para passar a sua mensagem.
Os gráficos e as imagens são impressionantes, e os argumentos ganham com isso uma grande força demonstrativa.
O ex-candidato à presidência dos E.U.A. parece ter encontrado a missão da sua vida e só por maldade se veria aqui qualquer intuito de utilização da ecologia em proveito da sua imagem pessoal.
A importância da mensagem tem sido desvalorizada por alguns, por a considerarem alarmista e exagerada nas suas projecções, coisa, aliás, prevista no próprio filme como uma reacção "natural".
Se nem tudo serão factos incontroversos, a grande probabilidade de nos confrontarmos com uma acelerada tendência para a catástrofe devia fazer-nos parar para pensar.
Mas nunca os meros avisos foram suficientes para mudar o comportamento das pessoas a uma grande escala.
O próprio facto do filme obedecer a uma retórica de vídeo-conferência e de campanha mediática titila os nossos neurónios sem nos atingir mais a fundo.
Não é, evidentemente, inútil o apelo de Al Gore, porque não sabemos qual é a "massa crítica" de consciência necessária para uma mudança decisiva, mesmo que, de princípio, se faça sentir apenas numa elite ou em grupos minoritários.
O simbolismo está datado, e é isso que mais choca na peça de Ibsen que a "Cornucópia" levou à cena.
A figura de Hilde (Beatriz Batarda) é a juventude de Solness (Luís Miguel Cintra) ou a sua própria morte, pela negação do tempo. Por isso Solness se defende dela, contra-atacando a actual juventude dos outros. É injusto para com o seu empregado Ragnar e atravessa-se no caminho da sua felicidade.
Mas não adianta resistir ao destino. Hilde desce da montanha para lhe lembrar o melhor de si próprio que jaz debaixo de anos de auto-tortura e sentimentos de culpa. A ideia de que todo o êxito mundano se paga com a morte do ideal. O sucesso profissional de Solness coincide com o incêndio que destruiu a casa da família de Aline, a sua mulher, e com a morte dos seus filhos gémeos.
Hilde convence-o a subir ao alto da torre que acaba de construir e a colocar ali uma coroa, como fizera há dez anos. Solness precipita-se, depois de cometida essa façanha.
Não estamos habituados a ver as ideias conviverem como personagens entre as demais.
Mas a psicologia está lá, sem uma falta.
Contra o senso-comum, um velho que se recusa a envelhecer faz uma espécie de pacto com a morte. Em troca de um último momento de glória, abandona-lhe o resto dos seus tristes dias.
No “Aviador”, filme de Martin Scorcese, a caricatura do milionário, privilegiado sem alma, indiferente à sorte do seu semelhante, não existe. O que existe é a ideia duma paixão útil ao seu país: os aviões, mesmo se a excentricidade tudo parece sobrelevar.
Assim, o egoísmo e o prazer contribuem, consumindo o corpo, os milhões públicos e os da fortuna pessoal para o progresso duma indústria que interessa a todos.
Claro que Howard Hughes nos é apresentado como um louco visionário, amado mesmo pelos seus fracassos, que, apesar de tudo, sabe que existe uma espécie de Providência que transforma os erros privados em virtudes públicas. A história da aviação seria assim, como a de outras grandes realizações humanas, feita de génio, coragem, desapego pelo valor do dinheiro e de desafio das leis e das mentalidades.
A sua defesa no tribunal contra o requisitório do seu principal concorrente (a Pan Am) é uma invocação da ideia mais cara aos Americanos e que lhes vem dum período da sua história em que o Estado não era garante de nada: a iniciativa individual.
O fim de H.H. na loucura contribui para dissociar a sua figura da iconografia do capitalista, mesmo excêntrico. E se é verdade que nunca se perdoará a um multimilionário o seu dinheiro, também não se pode julgar a vida de um homem senão depois de ele morrer (Séneca).
"Mas mesmo se nos abstrairmos do facto que a única duvidosa vantagem é um enfraquecimento da memória que dura o tempo da intervenção, o desenvolvimento desta prática parece-me apresentar um outro sério risco. Dado que a formação universitária geral dos nossos médicos é cada vez mais superficial, a medicina poderia atrever-se - na sequência da utilização ilimitada deste remédio - a empreender intervenções cirúrgicas cada vez mais complicadas e difíceis. Em vez de efectuar experiências sobre animais para fazer progredir a ciência, transformará em cobaias os pacientes que nem sequer se aperceberão de nada."
(citado em "La raison dialectique" de Max Horkheimer e Theodor Adorno)
Esta é a transcrição de uma carta de Jean-Pierre Flourens, fisiologista francês, sobre a utilização do clorofórmio.
O seu principal argumento é o de que "na sequência geral da enervação, as dores são ressentidas ainda mais vivamente do que no estado normal. O público é iludido pelo facto do paciente ser incapaz de se recordar do que se passou, uma vez a operação terminada."
Mas o que é uma dor de que não nos lembramos?
Esta concepção do corpo inconsciente que não deixa de sofrer os traumatismos que o narcótico impede que atinjam a consciência pode, de facto, ser generalizada.
Os efeitos a longo prazo, por exemplo, de certas tecnologias, nomeadamente as que produzem radiações ainda não suficientemente estudadas, não deixarão de ser averbados ao nosso estado físico e mental, num futuro mais ou menos próximo, mesmo se actua sobre a consciência dos danos uma outra espécie de clorofórmio que é a habituação e a sugestão colectiva ou institucional.
E o que se diz sobre alguns avanços temerários da medicina poderiam ser aplicados, palavra por palavra, à ciência moderna. Tudo o que não se sente imediatamente como limite é como se não existisse.
Como dizem os autores, "a técnica médica e extra-médica tiram a sua força de tal cegueira: ela só terá sido possível graças ao esquecimento. A perda da memória como condição transcendental da ciência. Toda a reificação é um esquecimento."
Sidney Poitier foi na história do preconceito racial no cinema o rosto da mudança.
Num filme como "Adivinha quem vem jantar" vemos que o casal de liberais que se confronta com a escolha da filha de casar com um negro, belo e educado, dotado de um currículo profissional distintíssimo, não teve só a coerência das suas posições públicas sobre o assunto a impedi-los de ceder ao "instinto social".
As hesitações e as moratórias só servem aqui a acção dramática, porque este doutor Prentice é, de facto, um negro-branco, tanto pela sua perfeita adesão aos valores do "establishment", como pela ausência de qualquer peculiaridade rácica, além de um certo problema de pigmentação.
Quarenta anos depois do filme, damo-nos conta do caminho percorrido e de como foi preciso começar pelo espécime perfeito, quando toda a diferença física era um argumento.
O Inverno é tempo de fé e de esperança. Quando se acredita que há-de vir o bom tempo e o sol da alegria física, quando se espera que o que nasceu ou foi semeado cresça e se faça homem ou árvore.
É o que nos diz o "Conto de Inverno", de Eric Rohmer. E, como se não bastasse a tradição natalícia, há no meio do filme uma cena da peça de Shakespeare com o mesmo nome, em que os mortos ressuscitam e os que desapareceram comparecem junto daqueles que viveram para isso.
Félicie conhece Charles durante umas férias e é o amor louco. Mas no regresso (ele vai emigrar para os EUA, e ela voltar a Paris), dá-se o inacreditável: ela engana-se ao indicar a sua morada. Lapso freudiano.
A acção transfere-se para 5 anos depois. Ela tem uma filha de Charles que nunca mais voltou a ver. Entretanto, conhece outros homens que ama, mas não o suficiente para viver com eles.
Toda a sua felicidade está em amar uma realidade ausente, mesmo se são escassas as hipóteses de se reencontrarem.
Já se adivinhou, porque este é o tempo dos contos, em que sempre acontecem coisas maravilhosas, que tanta fé e esperança são, no final, recompensadas, pois, um dia, se sentam em frente um do outro, por acaso, num autocarro.
Rohmer tem que nos dar, em poucos minutos, na introdução da história, a imagem da intensidade desse amor de verão, e escolhe para tanto uma montagem semelhante à de um vídeo-clipe, com cenas de amor sucedendo-se umas às outras, ao ritmo exaltante da música.
Esse recurso diz bem da impossibilidade de se contar a felicidade. Cai-se inevitavelmente no estereótipo. Uma fotografia, por exemplo, torna-se um buraco negro que absorve todo o sentido.
"Sleuth" (1972), de Joseph Manckiewicz, é um filme sobre o desprezo, o mais dogmático e inconciliável dos desprezos: o desprezo de casta.
Dois dos maiores actores do cinema moderno (Olivier e Caine) pedem meças um ao outro neste duelo de classes, através do jogo, até à morte. Como aquele jogo de mãos das crianças em que se perde rapidamente o controle.
Andrew (Olivier), velho senhor da gentry, colecciona autómatos e escreve policiais. Milo (Caine), cabeleireiro, de ascendência italiana, é jovem e começa a singrar na vida.
O primeiro odeia o segundo pelo seu sucesso, mas, sobretudo, por lhe ter roubado a mulher. Convida-o para a sua mansão no campo e facilmente o convence de que não poderá sustentar o luxo da sua amante, pelo que o alicia a um assalto simulado ao cofre das jóias.
Mas, obtido o flagrante delito, Andrew leva o seu jogo ao extremo e depois de humilhar, de uma forma execrável, o seu rival "mata-o" com um tiro de pólvora seca.
Quando vem a si do desmaio, Milo regressa a casa de Andrew, disfarçado de detective, incriminando-o com pistas fabricadas e depois de se revelar, humilhando-o por sua vez, fazendo-lhe crer que vai ser acusado pela morte da amante finlandesa que ele, Milo, teria assassinado, depois de conseguir que traísse o velho e lhe confessasse a sua impotência.
Andrew acaba por matar Milo, deveras, por não acreditar que ele tenha informado a polícia. Mas já se vêem as luzes do carro que parou à sua porta.
Milo, ao acordar do seu desmaio, poderia ter-se simplesmente permitido dar uma sova monumental a quem lhe pregou um susto de morte e com ele jogou como o gato com o rato.
Mas, com isso, confirmaria o lorde nos seus preconceitos de nascimento e privilégios. Era preciso jogar com as suas armas e consumar uma vingança de inteligência.
É Andrew que acaba por proceder como um burguês convencional, defendendo a tiro a sua honra e a sua virilidade.
Manckiewicz, grande amante do teatro e do artificio, deu-nos uma comédia genial, em que os papéis se invertem e as máscaras caem para mostrar outras máscaras.
Como a significar que nada é o que parece, a última imagem é a de um palco de teatro.
Laurence Olivier: um portento.
Pude, enfim, visitar a exposição sobre "O Corpo Humano", na rua da Escola Politécnica.
Estava à espera de qualquer coisa de animado e envolvente, com recurso à mais avançada tecnologia da imagem, e deparei-me com uma espécie de múmia do século XXI.
Esta técnica de polimerização permite eternizar as relíquias cadaverosas, sem ter de sacrificar as vísceras que os Egípcios destinavam aos vasos canópios.
Tudo, mesmo a mais nebulosa ramificação do sistema capilar pode ser recuperado e exposto diante dos nossos olhos incrédulos.
O atleta esfolado, com os músculos espetados como pequenas asas para melhor exploração visual, suspende-se na corrida impossível. Não longe, a própria pele inconsútil, artificialmente rosada, faz-nos pensar na muda de um réptil.
O cadáver explode pelas vitrinas, nos seus ossos, órgãos e tecidos.
Estes S. Bartolomeus de feira científica, sem pele e de olhos vítreos, não têm nada a ver com a vida nem com a morte.
Os próprios cadáveres que estiveram na origem da apresentação foram transformados em plástico. E melhor do que a múmia de Lenine podem responder às perguntas mais fáceis e sofrerem uma perpétua redissecação mental.
São já só uma distante conotação do corpo.
Alegadamente contra a hipocrisia do cinema de autor e conforme o espírito do movimento Dogma 95, o filme de Lars Von Trier (LVT) "Os Idiotas" (1998) não está assinado.
Além disso, é tosco, filmado com a câmara ao ombro, pelo próprio Lars, muitas vezes, e desrespeitando as regras da dramaturgia essenciais. O resultado é uma obra um tanto indigesta e desagradável ao olhar e que obriga o espectador a coser o que deliberadamente foi descosido. O sentido do filme depende, assim, de uma satisfatória reconstituição do puzzle formal com que LVT, por amor da "espontaneidade", complicou o seu trabalho.
A comunidade de idiotas voluntários, cada um à descoberta do seu "idiota interior", é vista pelo olhar de Karen, uma mulher que fugiu de casa e que, ao princípio, encara com cepticismo a terapêutica do grupo e questiona a ética das suas representações, no papel de falsos doentes mentais, junto da população.
O grupo acaba por não sobreviver aos seus conflitos internos, e Karen, que ensaia um regresso à sua família, mas comportando-se à mesa como um idiota doutrinado ( o que lhe vale uma bofetada do marido ), acaba por concluir que já não pode ter uma vida normal.
LVT talvez nos tenha mostrado que a sociedade dita normal se comporta hipocritamente com os seus doentes mentais, mas o seu parti pris de simpatia para com um grupo duas vezes hipócrita tira, de certo modo, todo o sentido à sua denúncia.
O ritual da iniciação diz muito sobre a sociedade que integra.
A solenidade maçónica, descrita, por exemplo, em "Guerra Paz", está de acordo com os ideais humanitários, mas Pierre sente-se desmoralizado por encontrar ali apenas a "boa sociedade" dos salões.
Em tempos mais primitivos o ritual era constituído por uma série de provas de que o corpo, geralmente, conservava as marcas.
As praxes estudantis têm algo desses rituais, mas perdeu-se a inocência e a ingenuidade antigas. É tudo feito perfunctoriamente, como um jogo que não se leva demasiado a sério, mas que parece, de qualquer modo, obrigatório.
Como acontece sempre nos casos em que a tradição perdeu a forma, e o espírito, como aquele banqueiro judeu em "Le Côté de Guermantes" que respondia "à la cantonnade" ao marquês de Foix, não só se perdeu, como não se encontra.
O imperativo de repetir sob novas formas deixa um grande lugar à imaginação, e porque tudo isso se pratica em público, o ritual parece destinado a "épater le bourgeois", senão fosse, quase sempre, apenas o sinal da perda do sentido do ridículo.
Por isso, quando vejo esses jovens a andar de gatas pela via pública, sob a batuta de algumas implacáveis capas negras, não sei o que mais admirar, se o zelo na comédia do poder por parte de uns ou a merina paciência dos outros.