
(José Ames)
Bento XVI
(...) e que em suma tudo o que se julgar digno de ser conservado, tudo o que os fracos, os cobardes, os conservadores, os burgueses tentam manter - o Estado e a Família, a arte e a ciência profana - esteve sempre em oposição consciente ou inconsciente com a ideia religiosa, com a Igreja cuja tendência inicial e cujo fim invariável é a dissolução de todas as ordens temporais e a reorganização da Sociedade segundo o modelo do reino ideal e comunista de Deus."
"A Montanha mágica" (Thomas Mann)
Não posso deixar de confrontar esta réplica de Naphta, o maquiavélico disputador do Berghof, no romance de Thomas Mann, com as palavras de Bento XVI, ao reconhecer que a Igreja está frontalmente contra o espírito do nosso tempo.
Na verdade, como no princípio, tenderá a ser cada vez mais minoritária, mesmo se a Praça de S. Pedro regularmente se enche, se o alojamento em Roma rebenta pelas costuras e a comunicação menos do que nunca pode passar sem o acontecimento para-religioso.
"The People vs Larry Flint" (1996-Milos Forman)
A pornografia não é uma causa. Para Larry Flint é a continuação do "moonshining" da infância.
Dantes, vendia o álcool da destilaria clandestina para esgaravatar o seu dólar.
Adulto, descobre um outro tipo de sede e de interdito. A revista "Playboy" oferece-se-lhe como o anti-modelo.
O que interessa Forman é a evolução deste individualista selvagem, dum comportamento predatório e anti-social, passando por um desvario religioso, até à sua identificação com uma verdadeira causa americana: a da liberdade individual.
A decisão do Supremo Tribunal de Justiça de reconhecer-lhe o direito de defender o vício e de espalhar o mau gosto, de distorcer a verdade em nome duma tradição satírica, mais não faz do que confirmar a lei ideal do mercado.
De todos os lados nos querem chamar à realidade.
Agarram-nos pelo braço e apontam a nuvem negra.
Não são aves agoirentas, não.
O que dizem faz todo o sentido. E quem nos avisa...
Há, todavia, um acinte e um certo contentamento no antecipar este fado.
Os nossos economistas tornam-se facilmente actores trágicos.
Por detrás da máscara do cast europeu e competente, a voz que se ouve é ainda a da "apagada e vil tristeza", do masoquismo e da maledicência.
O "Drácula" de Francis Ford Coppola (1992) é uma vertiginosa homenagem ao "Nosferatu" de Murnau.
A cena na floresta da carruagem que vem ao encontro do visitante, no meio duma alcateia de olhos fosforecentes, tem o mesmo ritmo alucinante do filme mudo, como se, no medo, a respiração fosse o principal.
O anjo que se revoltou contra Deus. Assim é a lenda do vampiro.
Mas como convém ao materialismo, o Diabo não quer saber da alma, mas do sangue, do soro da vida.
Na história das adaptações de "King Kong" parece verificar-se uma lei: a de quanto mais moderno, pior.
Como se a versão de 1933, de Merian Cooper e Ernest Shoedsack, fosse o modelo inultrapassável de todas as que se seguiram.
E talvez isto tenha a ver com o facto de se julgar que o mito não se basta a si próprio e é preciso condimentá-lo com as últimas guloseimas da tecnologia.
Na primeira versão, não havia tanta psicologia simiesca, nem uma lógica de dois em um nos efeitos especiais. Temos a história clássica mais o parque jurássico da computorização avançada.
E por isso são os meios que realmente fazem o filme.
Vincent (Warren Beatty) é um rapaz saudável sem ocupação, que quer ajudar os outros e por isso se emprega numa instituição para doentes mentais.
Mas encontra a malícia da figura não canónica da mulher, a que, segundo a tradição cabalística, não saiu da costela de Adão, mas era a sua verdadeira metade, metade que nunca quis submeter-se e por isso se aliou às forças demoníacas.
Lilith (Jean Seberg) é amoral e sexualmente polimorfa, como as crianças perversas.
É nessa miragem feminina que o ingénuo vigilante se deixa capturar, envolvendo-se com a doente e acabando por perder a razão. A última imagem é o seu pedido de auxílio, perante o olhar friamente "objectivo" dos superiores.
Na teoria do médico-chefe, estes doentes são, de certo modo, os mais dotados. A sua inteligência e a sua sensibilidade permitem-lhes uma experiência que não está ao alcance das pessoas normais.
Mas tal como a aranha "esquizofrénica" que vemos no filme, eles constroem uma teia que não serve para se alimentarem.
"O Novo Mundo" (2005-Terence Malick)
O cinema de Terence Malick é-me simpático. Gostei sobretudo de "A Barreira Invisível" (2000) e da sua escuta dum subtexto musical por detrás do som e da fúria da guerra.
Em "O Novo Mundo", foi o corpo que, em primeiro lugar, protestou contra os longos marasmos do filme e o seu descompasso.
Não é, claro, a lentidão que está em causa, mas um tempo que não se resolve, que parece perdido, a ponto da ideia dum novo mundo que devesse mais ao tempo do que à geografia ter sido indevidamente acolhida pela impaciência.
O velho que entrou na confeitaria, amparado, quando ficou sozinho, encostou a bengala e puxou dum beatífico cigarro.
Quando os prazeres se reduzem a este ponto e o próprio mal que nos fazemos é um desafio tão necessário à vida, sinto que respirar esse fumo é caridade.
A cabana de Heidegger
Sempre que surge uma nova tradução de Heidegger, a polémica reacende-se.
O filósofo, retirado, com a sua mulher Elfrid, numa cabana de seis por sete metros na Floresta Negra, não facilitou de nenhum modo a tarefa aos que hoje sentem a necessidade de o defenderem.
Desde o momento da sua adesão ao partido nacional-socialista, no qual chegou a ver o órgão da renovação do povo alemão, apesar de rapidamente ter perdido as ilusões e se ter demitido do reitorado, nunca deixou de pagar as suas quotas, até ao final da guerra. Para além disso, há o testemunho, na correspondência, do seu anti-semitismo e de não ter defendido Husserl, o mestre perseguido.
De facto, Heidegger nunca se retratou formalmente. A "maior tolice da sua vida", imperdoável perante os homens, mesmo se, nas suas palavras, se "julga o princípio do nacional-socialismo, a partir do seu fim", depois da tragédia consumada, talvez que ele só pudesse lidar com ela através do silêncio e da maturação da obra.
Em "J'embrasse pas", de André Techiné (1991), é a porção de neve da aldeia natal, nos Pirinéus, que parece guiar o jovem Pierre no fracasso do seu sonho de vir a ser actor e nos subterrâneos infernais da prostituição.
A demonstração, pírrica, que também ele, na grande metrópole, pode "faire chier les autres", depois do seu encontro com "Laisse tomber", a prostituta interpretada por Emmanuelle Béart, parece-se demasiado com a auto-destruição.
A última imagem é a dum banho redentor no oceano.
Em "Não dou beijos", há a diferença entre a rendição e o segredo.
"Trigorin - Se tu quisesses podias ser extraordinária. Ah, o amor de uma rapariga assim, tão encantadora, poética, e que me transporta para o reino dos sonhos - só um amor como este, e mais nenhum, pode trazer a alegria na terra! Eu nunca tinha experimentado este amor...
Quando era novo, não tive tempo para ele. Andava a bater à porta de editoras, num frenesi, para poder viver... E agora esse amor veio, veio finalmente, e arrasta-me para ela...
Para que serve tentar fugir-lhe?
Arkadina - (Furiosa) Perdeste o juízo?"
"A Gaivota" (Anton Tchekov)
Não podendo ver a peça, em Lisboa, por o espectáculo estar esgotado, consolo-me a relê-la.
É este homem, fraco de mais para fazer esta proposta absurda e infantil à amante e com quem o autor tão visivelmente se identifica, o homem que, nas suas palavras, passa, olha a rapariga que vive feliz e livre como uma gaivota junto ao lago, e como não tem mais nada que fazer, destrói-a.
E não se pode desprezar Trigorin, nem sentir que devesse ser perseguido por outra justiça que não a da sua própria vida.
Ninguém pode ser julgado. O mesmo olhar piedoso, embora não indulgente, envolve todas as criaturas. E se o amor é uma ferida incurável e o amante infeliz se suicida, só nos chega disso um eco entre os sons da noite.
Na "Gaivota", todos falham necessariamente.
Nunca o teatro nos deu uma tal sensação de exílio da alma.
Em Génova existe uma parede coberta de hera que teria feito parte da casa de Cristovão Colombo.
Os genoveses sorriem quando se fala dessa lenda. Parece que o homem que descobriu o Novo Mundo teria nascido numa aldeia vizinha.
Com as suas ruas de belíssimos palácios, os seus terraços, a vista sobre o porto, Génova não precisava de usurpar um título que tantos disputam.
Uma simples diferença de latitude, e Colombo poderia dormir descansado como o nosso Cabral, nascido em Belmonte, Beira Baixa, rigorosamente.
Um artigo do "L'Express" chama a nossa atenção para o fenómeno do esoterismo.
Antes do livro de Dan Brown, já havia entre nós uma voga astrológica que é o equivalente, noutro estrato social, da superstição popular.
Como sintoma, é interessantíssimo, está bom de ver.
No inquérito realizado em França, mesmo nos cartesianos se encontra uma cada vez maior tolerância para o irracional.
Mas, afinal, Newton, talvez o maior cientista dos tempos modernos, ao mesmo tempo que estabelecia as leis da gravitação universal, não se entregava, apaixonadamente, a experiências de alquimia?