terça-feira, 4 de outubro de 2005

QUE COISA É A PINTURA?


Francis Bacon ("Self-portrait")

A hecatombe florestal continua (ardem os caminhos silvestres da minha adolescência, em S. Pedro da Cova). Esta manhã, o Porto estava irrespirável. Fugi para a beira-mar, mas o próprio mar tinha fumo.

Na areia, alguns mexilhões (as cascas) em fila indiana. Mas não. Foi a onda que os distribuiu assim, elegantemente.

No café da praia, um quadro na parede, ingenuamente abstracto, lança-me num moinho de ideias. Já muito moídas, de facto.

Um “leigo”, sem talento especial para a pintura, que observe longamente um quadro do período clássico, não pode imitá-lo, de nenhum modo. Por falta de técnica, em primeiro lugar. Essas obras, às vezes, levavam anos a completar e requeriam todo um saber que podia ir desde o pigmento da cor até à anatomia da figura.

A mesma pessoa diante de alguns quadros de Monet, por exemplo, sentirá que a tarefa foi enormemente simplificada.

A abstracção deu um salto ainda maior. E uma pintura de Mondrian ou de Pollack parecem não oferecer grandes dificuldades, pela inexistência do desenho e pelo imediatismo da forma.

Claro que estas obras podem estar cifradas e apenas a posse de um código, no segredo do autor, permitirá a sua leitura definitiva. Mas isto pode-se fazer sempre, qualquer que seja a arte escolhida e envolve o problema duma falsa complexidade.

Por outro lado, temos sempre de distinguir entre a criação original e a imitação, e é aquela que, no fim de contas, confere o valor, qualquer que seja o período a que pertença o objecto artístico.

Não se pode negar, porém, a distância que a técnica percorreu, desde um Piero de la Francesca até um Francis Bacon, no sentido de se “libertar” a ideia do seu meio de expressão.

Alain considerava que uma coisa não ia sem a outra e que era a resistência da matéria-prima e o labor técnico inspirado pela ideia que davam à obra o seu cunho de originalidade.

Aquela tendência da pintura aproxima-se, na verdade, das formas ready-made e das técnicas do computador. No monitor, com certos programas, podemos imitar todos os estilos, mas nunca estivemos tão longe da pintura.

1 comentários:

antonior disse...

Concordo com a maioria do que está dito. Permanece o desconforto de uma questão eterna. Aceitando que um dos factores determinantes na valorização mercantil da arte antiga é a sua importância histórica, o que leva os mercadores actuais a valorizarem mais um objecto de arte contemporânea em relação a outro, quando quantas vezes, a validade conceptual é igualmente defensável e o contributo da linguagem técnica é mínimo. Que pena ter de poluir o discurso da arte com o factor material, mas quando nos encontramos a decidir o protagonismo da arte na nossa vida, se lhe quisermos entregar todo o tempo teremos de continuar a comer...

Ah! Com um computador afastamo-nos da pintura, concordo! Eu tenho as duas experiências! Gosto mais de colorir as mãos com a tinta e já não passo sem o cheiro da terebentina, mas com o computador também se pode dizer muita coisa.

Excelente o auto-retrato do Bacon.Evolui a cada observação.A obra global dele, também e torna-se cada vez mais consensual.