quinta-feira, 2 de junho de 2016

JUÍZOS FURTIVOS




"(Clarisse) não pensava nas frases dele, literalmente, lembrava-se do conjunto; tinha comprimido os seus pensamentos num minúsculo embrulho, tão maravilhosamente reduzido como a trouxa de um ladrão. Para ela, esse trajecto era metade filosofia, metade adultério."
"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)

É esta uma abordagem do 'eterno feminino'? Se for, só o descobriremos depois de ter atravessado os vários estratos do significado, como um arqueólogo.

A persicácia de Clarisse é acompanhada de uma grande indiferença pelo detalhe, considerado simples táctica de disfarce. O 'embrulho' já foi expurgado da redundância e das tentativas de camuflagem.

Intuição do género? O resultado da avaliação é este par muito suspeito: filosofia e adultério. É uma outra versão do 'cherchez la femme'. As ideias por mais que tentem alcançar o sublime e a abstracção desinteressada, estão feridas de morte por este imperioso companheiro. Como acontece na imagem platónica dos dois cavalos jungidos ao carro, o mais fogoso impõe a sua vontade. A filosofia torna-se complacente com a força a que está atrelada e acaba por justificá-la. Embora Platão não possa ser suspeito de feminista 'avant la lettre' (antes pelo contrário), há aqui como que um fatalismo a favor do poder do sexo ('fraco').

A 'trouxa do ladrão' tem o essencial: as ferramentas necessárias e a 'invisibilidade' possível. Porque Clarisse não está em condições de assumir a sua presunção. 



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