sábado, 5 de janeiro de 2008

O ÚLTIMO METRO


"Le Dernier Metro" (1980-François Truffaut)


O filme de Truffaut é a arte mais refinada, mas eu quero entrar e sair e compreender como é possível nas grandes obras o todo pela parte. As leis anti-semitas não fazem rir, e sabe-se hoje como acabou essa perseguição ao ser humano. Mas os propósitos de Daxiat, o jornalista do regime, nos seus discursos radiofónicos ou nos seus artigos em “Je suis partout” são verdadeiramente loucos, como diz Steiner. E no entanto essa loucura tem a força pelo seu lado.

A guerra precisa de desarmar o espírito que sabe rir da estupidez. Eis por isso uma aliança natural entre o ocupante e os fracos de pensamento, homens sem coragem e sem razão. Contudo, as denúncias não são de dez nem de vinte, mas de milhares. Isso parece provar o triunfo dos maus, que são gente que cai mal, como nos faz ver Alain. É que a guerra mata os melhores na frente e amordaça e decapita a elite na retaguarda. São os militares que governam, ou melhor, a máquina militar.

Quando a parte razoável da sociedade deixa de fazer-se ouvir, cala-se também a razão no indivíduo. A mediocridade é o fruto dum regime que só respeita a força. Mas a falar verdade é impossível um tal regime. As próprias paixões do homem chamam o espírito em nome da vida e da sobrevivência. Não se pode honrar só a força por muito tempo, e mesmo o idólatra quer salvação e paz com o seu ídolo. Mesmo o tirano quer consentimento. O domínio dos brutos, que é dum momento, pôs um revólver em cada pusilânime, e o que se viu foi um ajuste de contas mesquinho pela lei do interesse e do ódio. Poder acusar o senhorio de judeu, o patrão, ou o amante da mulher era tomar parte na violência do Estado. Juntar-se aos fortes.

Longe de ser uma mania do conquistador, o anti-semitismo era uma espécie de partido inorgânico. Descobrir e essência do judeu e o seu traço genealógico tornou-se assim o supremo exercício intelectual. Era essa a depravação própria de Daxiat. O bem e o mal deixavam finalmente de ser princípios abstractos. Incarnados no sistema racial, eram agora tangíveis e conforme o mais estrito materialismo. A religião descia ao nível da bota. O homem é crédulo e perde-se por aí. Basta que o pensamento não se exprima em palavras e actos para tudo cair na noite mais profunda. É assim que fazem os senhores da guerra. E porquê tanta atenção sobre as pernas? Esta opinião que se julga com direito a comentar a heresia sexual é certamente moderada. Mas o outro já não pode pensar-se senão como estrela cor-de-rosa, e é mudar a cor natural. Mas não dá vontade de rir este preconceito. O espírito sangra diante de tantas lanças apontadas. A guerra de religião é sempre possível.

O homem que põe em causa o rito sexual escandaliza absolutamente. E todos os ritos tendem a cair no abdómen. O esforço contra a queda é a lei do pensamento.

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