A Medusa de Caravaggio
"Quando, algumas horas mais tarde, entrei no quarto da minha avó, presas à sua nuca, às suas têmporas, às suas orelhas, as pequenas serpentes negras retorciam-se na sua cabeleira ensanguentada, como na de Medusa. Mas na sua face pálida e pacificada, inteiramente imóvel, eu vi completamente abertos, luminosos e calmos, os seus belos olhos de outrora (talvez ainda mais carregados de inteligência do que antes da sua doença, porque, como ela não podia falar, nem devia mexer-se, era aos seus olhos só que confiava o seu pensamento, pensamento que tão depressa tem em nós um lugar imenso, oferecendo-nos tesouros insuspeitados, como parece reduzido a nada, pois pode renascer como que por geração espontânea, graças a algumas gotas de sangue que se tira.)"
"Le côté de Guermantes" (Marcel Proust)
Toda a descrição da doença e agonia da avó, em "Le côté de Guermantes", que se supõe basear-se nas da mãe do autor, é um lugar cimeiro da literatura mundial.
Fiel a uma ética do olhar "inocente", o mais possível calcando aos pés todo o preconceito, como ao dragão o S. Jorge da iconografia, nem a memória clássica da cabeça de medusa parece trazer aqui um desmentido. A cabeça da avó coberta de sanguessugas (para, segundo o médico Cottard, lhe descongestionarem o cérebro atacado pela uremia) é uma imagem a que um autor como Proust não podia escapar, como, de resto, a ninguém que conhecesse o mito. E é esta espécie de necessidade que devolve a inocência à descrição.
E não sentimos nesta dependência e inquietante proximidade do pensamento em relação ao verme, que lhe parece ser o mais oposto na cadeia da existência, a prefiguração de um outro tipo de contacto no metabolismo funerário dos vermes da terra?
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