
"Back to the ship" (José Ames)
O Homem do Leme, na Foz, no seu capote ao vento e chapéu escorrendo água, arrosta o mar embravecido da tempestade.
Mas isso é no fundo, muito lá no fundo de nós.
Neste instante, a luz do verão inundou tudo e o seu chapéu bóia entre as copas dos metrosíderos.
Esta manhã em Vila do Conde, havia sol na areia e névoa em cima da água.
De tal modo que os penedos e os corpos como lulas fantásticas, quase tão imóveis como aqueles (não havia ondas), pareciam ficar por detrás duma vidraça ou fazer parte dum fresco em que se empregasse o "sfumato" abundantemente, em contraste com as cores vivas dos guarda-sóis. Um silêncio estranho contribuía para que tudo parecesse parado.
Intriga-me cada vez mais este culto. Já não é o da saúde, visto que são cada vez mais os avisos de que o sol mata. Do quê então?
Karl Marx, circa 1839
"Nós sentimo-nos confrontados com aquilo que Marx chamava um "processo sem sujeito", conceito que foi reformulado nos anos de 1950 pelo teólogo protestante Jacques Ellul.
Nem a economia, nem as tecnologias, nem a comunicação mediática parecem já verdadeiramente governadas pela vontade humana. Estes dispositivos, estes "processos" obedecem em primeiro lugar - e essencialmente - a causalidades estruturais e a avanços "sem intenção".
Jean-Claude Guilleband ("La grande inquiétude" - Etudes - Revue de culture contemporaine)
Esta passagem que colhi duma revista dos Jesuítas é estranhamente sedutora. Dum ponto de vista religioso, ela retoma a análise do jovem Marx dos "Manuscritos Filosóficos", cujo espírito prometeico é evidenciado por esta vontade de encontrar um sujeito para o processo histórico. O Homem deve poder controlar as suas condições de existência.
Foi nesse espírito que, por exemplo, as nacionalizações da Revolução de Abril puderam representar, durante um tempo, uma espécie de passagem do centauro para o homem.
Mas a ingenuidade não explica tudo. A grande síntese hegeliana preparou a nossa cultura para ver esse lugar vazio no comando, ocupado antes, evidentemente, por Deus.
O meu comentário é este: quando é que os vários "processos" em acção no mundo tiveram um sujeito, antes da filosofia inventar tanto esse sujeito quanto os ditos processos?
As imagens da destruição provocada por Israel no Líbano são demasiado eloquentes. Os danos colaterais revoltam o espectador ( mas talvez reconfortem o fanático).
Na outra guerra pelo sentido, essas imagens já julgaram.
Não haverá mais nada a dizer?
Que imagens podem opor a isso o medo do futuro e a insegurança permanente? Não são mediáticos, de modo nenhum.
No mundo da televisão (não teremos de nos desintoxicar antes de procurar compreender?), um Estado armado até aos dentes esmaga um povo a quem roubou a terra. O terrorismo e a política das potências regionais que cercam esse Estado não contam perante a bandeira do povo despojado. Até os mísseis disparados contra Haifa são uma justa retaliação, sem se ver que amanhã poderão, com a mesma facilidade, trazer o nuclear. É certo que Israel já tem a bomba. Mas não é o Estado que acredita numa segunda vida.
Os espectadores dividem-se. Mas não podem ser justos perante esta guerra.
A nossa única esperança é que uns e outros encontrem uma força maior que os obrigue a enterrar o passado e a sair da espiral de violência.
Esta já não é uma guerra entre fortes e fracos ( por que haveríamos de limitar a força ao aparelho militar?).
Há mais irracional nesta guerra do que em qualquer guerra recente.
Não resisto a citar a passagem em que Elias Canetti ("Masse et Puissance") se refere aos Jivaros do Equador, que encolhem a cabeça do inimigo:
"Para eles não há morte natural; se alguém morre, foi um inimigo longínquo que o enfeitiçou. O dever dos seus é descobrir quem foi responsável pela sua morte, e vingar esta no autor do enfeitiçamento. Toda a morte é assim um assassínio, e todo o assassínio só pode ser vingado com outro assassínio."
Ewa, a avó passa por ser a mãe de Ania, porque Majka, a verdadeira mãe era demasiado jovem e o pai professor na escola que Ewa superentendia.
Em desespero, Majka rapta a própria filha, mas é incapaz de se ver reconhecida como mãe pela criança. As fugitivas são por fim encontradas, pela família, numa estação de província. Majka mete-se sozinha no comboio.
O 7º episódio de "O Decálogo" mostra-nos um caso de amor possessivo e maternidade usurpada.
A avó nega à sua filha o amor de mãe (depositara nela demasiadas esperanças) e reclama Ania como seu bem exclusivo.
É então possível ser-se injusto vivendo para outro ser (noutro ser), quando se rouba esse papel?
No segundo episódio do "Decálogo", de K. Kieslowski, uma mulher enfrenta o dilema de abortar do único filho que pode ter, mas que não é do marido, se este sobreviver a um estado comatoso ou, no caso contrário, ser mãe e seguir o outro homem.
Ao intimar o médico a dar-lhe a certeza que ele não pode ter, pergunta se compreende que possa amar os dois homens.
O velho esquiva a resposta, mas, para salvar o bebé, acaba por jurar (contra a deontologia profissional), que o marido não tem qualquer hipótese.
No final, o morto regressa à vida e, agradecendo ao médico, comunica-lhe que vai ser finalmente pai.
Não sabemos se já sabe a verdade, ou se ela lhe será revelada um dia.
Mas nada parece, de facto, mais importante do que a nova vida.
Um taxista, em Dublin, ao saber que sou português, comenta que não me devo sentir muito feliz (foi no dia seguinte ao "penalty" de Zidane).
Puxando por ele, consegui a sua opinião sobre os nossos jogadores, que proferiu com uma gargalhada, logo seguida dum pedido de desculpas:
- No matter! They'll always make a living as divers!"
Sandcove (José Ames)
A Irlanda não tem a nossa velocidade automóvel. As principais estradas atravessam cidades ( ontem, demorei uma hora numa exasperante procissão, sob chuva, pelo centro de Ennis), como as nossas há uns anos.
Outra coisa é a informação. Nunca vi tanto ciber-café com tantos jovens se acotovelando.
Depois de reestruturarem o aparelho produtivo, utilizando os fundos europeus nessa dolorosa transição, vão poder agora virar-se para as auto-estradas.
Entretanto, parecem ter resolvido o problema do desemprego, através do crescimento económico, e o seu salário mínimo é já de 1.326,00 € (2005).
A nossa escolha foi outra. Preferimos criar condições à espera da iniciativa e dos sacrifícios voluntários.
Sendo o turismo, em princípio, o grande beneficiário das melhores estradas, é irónico que a Irlanda, justamente, apresente o seu fraco desenvolvimento nesse domínio como um atractivo turístico...
"Não existe um outro mundo. Nem sequer este existe. O que há então?
O sorriso interior que em nós suscita a inexistência patente de um e de outro."
E. M. Cioran ("Ébauches de vertige")
Ah! como eram fáceis os tempos em que se podia dizer que a melhor prova da existência dum pudim era comê-lo!
Agora a sério. Posso aceitar que nada existe (assim como podemos dizer que Deus não existe, sem com isso negarmos a relevância, para os homens, da questão), dum ponto de vista cósmico.
Só conhecemos o nosso mundo, mas podemos pensar que ele é realmente nada no meio do que o ultrapassa.
O sorriso interior não é a favor nem contra este destino. É um arco-íris sobre a gesticulação humana.
Lynch é um mestre da imaginação.
O som e os silêncios são nele mais importantes do que noutro que eu conheça.
Transformam a "wonderland" do cinema num lugar sinistro a que uma Alice de província (Betty) traz um optimismo alucinado.
O rendez-vous nocturno com a personagem do "cowboy", inverosímil e ridiculamente anacrónica, mas tanto mais perturbante, constitui um momento sobrenatural de cinema.
Mesmo aí, o besouro da lâmpada a fundir-se, junto da caveira do deserto, é o que mais nos impressiona.
"La Luna" (1979 - Bernardo Bertolucci)
O que nos leva a ser tão indulgentes com este filme, que acaba tão bem, é a ideia da psicanálise. Já foi um lugar-comum interpretar o conflito básico da família em termos de função sexual e luta entre o princípio do prazer e o da realidade. É só aborrecido que este mito moderno não seja tratado como poesia.
Há no filme uma demonstração desnecessária. Uma boneca russa dentro de outra. Esta viagem à procura do nome do pai – da herança, do território, do modelo que se ergue sobre o barro materno – corresponde a um tema literário ou à psicologia natural? O adolescente injecta-se de heroína porque não lhe importa a vida. A mãe como pessoa não lhe interessa. Verdi deixa-o indiferente, apesar de ser como um pai para Catarina. Não podemos deixar de pensar na actual crise da família que é uma crise da palavra do pai.
A televisão apareceu como um politeísmo usurpador na casa familiar. Deu às crianças um simulacro do poder mágico sobre o mundo que era exclusivo do adulto. E a fonte da linguagem social e dos modelos de identificação passou a ser outra. Ninguém viveria um momento sequer com a peste dentro de casa, se pudesse correr com ela. Mas todas as barreiras foram vencidas. Não dispomos de nenhuma arma contra uma inclinação tão natural.
Os estupefacientes, os jovens cansados de viver, os adultos que regressam à infantilidade, sinais dos tempos. Mas há quem insista em ver no fenómeno de decadência espiritual apenas o conflito de gerações. Bertolucci dá ao filme uma conclusão que em linguagem política se podia chamar de reaccionária.
Mas não esqueçamos que é um italiano, e que, ao tempo do filme, os jovens no seu país resolviam o complexo de Édipo pelas armas.