
Porto (José Ames)
A nuvem de Chernobyl
Quando se fala pela primeira vez, com tal clareza, na comunicação social das terríveis consequências, passadas, presentes e futuras, para lá, se calhar, da presença do homem na terra, do desastre de Chernobyl, percebe-se como é vital para a humanidade salvar a memória e prestar-lhe um culto cívico.
Não é só porque o revisionismo da história é sempre possível e porque se este prevalecer perderemos para sempre o conhecimento dos nossos erros e dos nossos crimes, mas porque sem esse culto, que é também uma espécie de perdão, estaremos condenados a viver prisioneiros da actualidade, sensíveis apenas aos problemas do curto prazo e sem respeito pela humanidade futura.
Como se vê na sinistra unanimidade que parece esboçar-se em torno do regresso à opção nuclear.
Estaremos a decidir agora, inconscientemente, como é próprio da tragédia, o suicídio da espécie?
É saboroso ver em "Artistas e Modelos", de Frank Tashlin (1955), como a banda desenhada (os comic books) pôde numa certa época ser considerada por alguns uma ameaça social.
Em termos de alienação e de dessublimação da violência o que é isso comparado com os jogos de computador?
Era o primeiro sinal de alarme da perda de influência da família na formação dos jovens.
Intérprete de "Infiltrado"
No falso assalto ao banco, em "Inside man" (2006-Spike Lee), falso porque as armas são a fingir e por que o que se rouba é um segredo que o banco não pode correr o risco de ser revelado, quase acreditamos, como o autor do golpe, que este não podia falhar.
Os únicos que se podiam queixar eram os reféns porque a todos os restantes personagens interessava este acordo de cavalheiros entre ladrões.
Nicolai Gogol (1809/1852)
"Mas sabendo por experiência o pouco interesse que suscitam as classes baixas, o autor sente algum escrúpulo em reter a atenção sobre tão fracas personagens."
"As almas mortas" (Nicolai Gogol)
Gogol refere-se ao cocheiro e ao criado de Tchitchikov, a personagem principal. Ora, este humor é hoje quase incompreensível. O snobismo não resistiu à Revolução.
Por isso o desprezo é hoje mais subtil. E não se funda em pergaminhos de classe e de cultura, mas chega-lhe uma justificação estatística.
Assim um ex-ministro pôde dizer há dias, como a verdade do evangelho, que os jovens agora têm de renunciar à segurança e à estabilidade dum emprego.
César foi, enfim, assassinado. E caído nas lajes do Senado tentava pateticamente cobrir o rosto com a toga, como a poupar aos seus carrascos a ilusão da sua fragilidade.
Porque o homem era mais do que o indivíduo e a sua ambição. Com ele, o futuro atravessara o Rubicão. E foi o primeiro a compreender que o crescimento do império tinha acabado com a República.
Que diferença entre Ciarán Hinds e o César da versão de Mankiewicz!
Ou entre este Brutus, esmagado e sem fala depois do horrendo acto e o herói shakespeareano representado por James Mason!
"A verdade, que é sempre um bocado maior do que a realidade. A verdade que fala por hipérboles exactas. "Levai daqui o meu cadáver" diz Édipo."
"Os Imperdoáveis" (Cristina Campos)
Resisti a ver a "Paixão" de Mel Gibson, quando passou nos cinemas. Vi-a agora na televisão, enquadrada na programação pascal.
O repúdio de alguns dos meus amigos em relação ao "gore" hiper-abundante deste filme, visivelmente bem intencionado e tecnicamente competente, com a introdução eficaz da figura do Sedutor, não pude deixar de senti-lo na cena da flagelação.
A história evangélica, tantas vezes contada, aqui tropeça fragorosamente na intenção de chocar e de convencer, como se a arte se tivesse esquecido dos seus limites e da sua natureza para se propor uma repelente, porque hipócrita, imitação da vida.
Como Hitchcock, que nunca perdia de vista a reacção da plateia e por isso tinha uma relação libertina com a verdade, não se coibindo de nos enganar, para nosso deleite, com os seus "McGuffins", Mel procura, sem dúvida, um efeito piedoso garantido pela via traumática.
Mas aqui estamos precisamente a lidar com a Verdade e não nos é permitida a libertinagem de Hitchcock.
Parece que a comunicação social se começa a preocupar com o aspecto da cidade, que não é só boas ou más ideias urbanísticas, mas é também a forma como (nel)a vivemos.
Li dois artigos quase seguidos, um sobre Lisboa e outro sobre o Porto, em que se chama a atenção para o grafito selvagem e para essa outra espécie de expressão alógica, conhecida por "tag", que não poupa paredes, nem património.
A proliferação deste fenómeno só tem encontrado, até aqui, resignação e conformismo por parte da população, e uma incompreensível passividade por parte das autoridades.
"(...)Quem iniciar o primeiro dos cinco percursos incluídos no programa dos Caminhos do Romântico, que abrange toda a zona do Palácio de Cristal, Quinta da Macieirinha e Casa Tait, facilmente se escandaliza com a pouca ruralidade que sobrou. Não há um único metro de parede sem spray, as paisagens são pintadas ao detalhe e as cores atropelam-se sem critério definido. O Porto rural, a que o projecto de requalificação pretendia levar os visitantes através de um passeio pelas estreitas ruelas seculares, desapareceu por debaixo de uma densa maquilhagem de tinta(...)." (Estela Ataíde no "Público" de hoje)
A indignação só, claro que não resulta perante este vandalismo, por estudar nos seus contornos e nas suas motivações. Decerto que a vertigem do risco e da transgressão deve ser mínima, já que são raríssimos os protestos e é nenhuma a vigilância e a punição.
Mas esta forma de publicidade negra terá a sua economia, os seus objectivos e o seu público-alvo. Por outro lado, ao contrário do grafito com pretensões artísticas e que podia ser desviado para locais reservados, o "tag" parece ser apenas destrutivo. Compreender isto é um trabalho de antrópologo, sem deixar de ser um caso de polícia.
Errol Flynn em "Todos morreram calçados"
O filme de Raoul Walsh sobre Custer, "They died with their boots on" (1941), é uma bela ilustração do princípio de que os nossos defeitos se assemelham mais às nossas virtudes do que aos defeitos dos outros homens.
A negligência do cadete e o seu comportamento anárquico têm um ar de família no rigor e na disciplina do tenente, logo general. A idolatria pelo mais flamejante dos generais napoleónicos (Murat), a sua vaidade sem limites, nem má consciência são o combustível duma coragem indómita e dum lendário destemor.
Quando o visita no hospital, depois duma vitória, contra as regras militares, o seu superior comenta:
- em circunstâncias como esta, a opção é entre o pelotão de fuzilamento e uma medalha; desta vez, é uma medalha.
Bryce Canyon
Por entre os penedos de Lavadores, brincam os meninos. Um deles sai de um "desfiladeiro" e olha em volta, em plena descoberta.
Sem a perspectiva que dá a cada coisa a sua distância, sem o horizonte recuado e dominado que se oferece aos nossos passos e à nossa acção, mas, em vez disso, a floresta virgem em que é preciso abrir caminho e o mundo tão grande como as nossas emoções. Assim é a infância.
Imagino o que seria preciso para voltar a encontrar-me num mundo novo.
Era só preciso, talvez, desligar o computador de bordo...
São tantos os sinais de que realmente nada é como pensamos!
"Uma história de violência" (2005-David Cronenberg)
Nesta quase versão de "Out of the past", David Cronenberg dá-nos a história dum mafioso que se esconde sob uma nova personalidade, de pai de família e "local hero" provinciano.
É a extraordinária eficácia com que lida com os violentos que pouco a pouco torna verosímil a denúncia dos criminosos que o conheceram e que pretendem desmascará-lo e tirar vingança.
Cronenberg parece acreditar na regeneração pelo amor e a cena final em que os filhos põem mais um prato e lhe passam a comida e o perdão já visível nos olhos da mulher, é isso que significa.
Não há nada, porém, que tire este filme da mediania, pois não sabe explicar-nos como é que uma natureza pode assim dissimular-se, voltar à tona e de novo mergulhar, e o registo não se quadra em absoluto com o mito do Dr. Jekyll e Mr. Hyde.
"Manhattan" é o melhor do estilo de Woody Allen. Descontraído, conversado como o jazz, lubrificado por um famoso humor verbal que parece às vezes ser o único pretexto para algumas cenas.
No tempo em que Woody estava na moda, não faltava quem procurasse nos seus filmes uma dificuldade intelectual de bom tom. Esse aspecto foi já esquecido pela opinião pública.
E agora estas comédias aparecem demasiado expostas e sofrendo do precoce envelhecimento das piadas.
No X episódio de "Roma", o soldado Pullo, desmobilizado da 13ª legião, que se apaixonou por uma escrava, compra a sua liberdade para fazer dela a sua esposa legítima.
Não sabia que a violência da relação política o impedia de descobrir os verdadeiros sentimentos da criatura, e tomou o medo e a obediência pela afinidade amorosa.
É bem verdade, como dizia Hegel, que o escravo sabe tudo do seu senhor, e até o ódio pode ser um melhor mestre do que o desprezo.
Pullo nada sabia da vida de Irene, nem da escolha secreta do seu coração.
A "Flauta Mágica" é uma obra misógina?
Excluída da irmandade maçónica, regida pelo princípio solar, a mulher simboliza aqui as forças irracionais, a imaginação, o reino da noite,
Num dos raros exemplos na arte de uma mãe desnaturada, a Rainha da Noite clama não só pela morte da Razão (Sarastro), mas também pelo sacrifício da filha (Pamina) às criaturas infernais.
A moralidade de "Così fan tutte" parece igualmente incriminar o nosso génio.
De resto, talvez nem se deva falar em misoginia, mas numa falta de acesso à palavra, numa infantilidade histórica (mas não na vida real) a que o passado parecia condenar o feminino.
A "Flauta Mágica" (1975-Ingmar Bergman) é pura alegria.
A Tamino e a Pamina não chega existirem e amarem-se.
Essa era a via da Rainha da Noite. Sarastro impõe-lhes uma purificação e uma prova.
Na vida real, Sarastro saiu de cena pela esquerda baixa.
Em que é que este é um filme de Bergman? Em que estamos decididamente no mundo do teatro.
E a música, tantas vezes ouvida e perdida, ganha uma nova mocidade só por vermos o efeito dela no rosto daquela menina, durante a Abertura.
Em "Syriana" (2005-Stephen Gaghan), conta-se a intriga dos lobbies americanos da energia e da sua ingerência no governo dos emirados árabes.
Moral da história: a maior economia do mundo tudo fará para garantir as suas fontes de energia.
Como esse objectivo é incompatível com a democracia e com a boa-consciência do "in God we trust", o sistema histeriza no seu perverso jogo de poderes paralelos e faz da corrupção o princípio recalcado nos discursos patrióticos e na fé dos direitos humanos.
Mas por que é que então o filme não parece uma denúncia, não muda coisa nenhuma e ainda por cima é um produto economicamente viável duma indústria milionária?
Há uma inércia tranquilizadora, apesar de toda a verdade poder ser dita.
Apesar do slogan, a verdade nem sempre é revolucionária.
Ou será que a verdade nunca poderá "aparecer" no cinema ou na televisão?
Não há aqui um caso de irrealidade do testemunho?
O regresso das distâncias (por falta de gasolina) num país que cresceu para o automóvel é uma visão suficientemente apocalíptica para não "dar razão" à verdade,
Browning e os seus "Freaks"
No TCM passou há dias "Freaks" (1932), um clássico de Tod Browning.
É um filme único pelo elenco, constituído na maior parte por anões, homens-tronco e mulheres barbadas. E o seu lugar de encontro só podia ser o circo.
O mundo da produção rejeita estes infelizes que já não têm forma para deformar, mas o do espectáculo acolhe sempre o que pode impressionar a imaginação.
Há uma cena comovente que podia ser o símbolo da estranha irmandade que une estas criaturas exiladas entre os homens:
um homem declara-se a uma das irmãs siamesas, enquanto a outra finge que não é nada com ela. Depois, ele beija a namorada e nesse momento vemos o êxtase no rosto da outra metade.
Uma piada recorrente nesta história é a dum gago que, quando uma das siamesas decide fazer o contrário daquilo que ele exige da outra, arrastando-a consigo, repete como um refrão: vocês têm sempre o mesmo álibi!