sexta-feira, 21 de abril de 2006

PLATAFORMA

"2001, A space Odissey "(1968-Stanley Kubrick)


Na plataforma apinhada de gente, a velha enfia o ramo da planta que traz embrulhada no regaço, sem dar por isso, no rabo do moço que olha pela janela. O velho zanga-se. Dois namorados reverberam de saúde. Ela merece do jovem encostado ao canto um olhar em que há súplica e desejo. Este rosto enérgico e triste faz-me lembrar Keir Dullea, o astronauta da “Odisseia” de Kubrick. E aquela cena duma angústia climatizada em que o herói computa o sono artificial dos outros tripulantes. Era isso que me apetecia fazer: saltar na primeira paragem para a sala de cinema.

O que falta na cidade electrónica em missão no espaço é a natureza. Os homens envenenados pelas suas próprias invenções morrem lentamente, separados paradoxalmente do universo e de si próprios. A ausência total de sensações, que um bit do cérebro mecânico traduz no processo irreversível da morte, é uma forma de poupança dos que hibernam. Mas os que viajam que lhes resta fazer senão perder sempre ao xadrez com o computador? A nave é um sistema fechado quase perfeito. A surpresa quase eliminada, de que lado podem vir os perigos? A política é impensável e a guerra. Os homens referem-se a um princípio infalível. Eles são o comando manual do cérebro electrónico. O instrumento autónomo. Sujeito por isso ao erro da desobediência. É caso para perguntar se o estratagema do computador não é imaginado pelo aborrecimento humano. Ou se o programa se sente ameaçado pela reivindicação da vida. É preciso esconder à tripulação o sacrifício implícito na missão secreta, ou a rotina é já ela própria o sacrifício? E contudo vive-se numa prisão colorida, cheia de distracções inteligentes. Telefona-se para a família, desenha-se para o olho crítico de Hal. Por que é que Kubrick nos embarca neste regresso a Ítaca?

Na superfície curva e asséptica, o homem desloca-se no seu passo ginástico. Bronzeia-se debaixo da lâmpada. Nunca a força humana e a beleza pareceram tão abstractas e inúteis. Incompreensíveis como o espaço imenso e recamado de astros que envolve tudo. A matéria lisa, geométrica, articulada como a linguagem e a lógica fecha completamente os homens. A segunda pele tornou-se o fim de si mesma. Não respira, não protege a acção humana. A mediação é interrompida para sempre. Como se os dejectos humanos entrassem no círculo vicioso e o pensamento fosse impossível, por se ter perdido a noção de objecto. A nave é um símbolo da esquizofrenia. Hal é o único que pensa. A terra existe para si como uma ordem. Mas o rebelde só quer salvar a vida. E começar do zero a aventura do Homem.

Chegamos a Campanhã. Abençoadas árvores!

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