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Porto |
"Peço-lhe apenas que, se levar o seu projecto por diante, e quando entender que eu sou, objectivamente, como se diz, um horrível fascista, não o negar, o que seria impossível, mas tentar somente não o pensar."
"Cahiers" (Albert Camus)
Parece contraditório entender, mas não pensar segundo esse entendimento. Porque não se trata aqui de 'não pensar'. É antes um 'abrir parêntesis' que permita o diálogo e a amizade. Não pode ser uma suspensão do juízo, porque o juízo está feito, decorre da doutrina como a conclusão decorre das premissas, como num silogismo.
Porém, é como se o sujeito que 'sabe', que 'entendeu' o que estava em causa, decidisse contra a lógica por causa de algo maior do que a lógica, ou diferente dela em termos existenciais. Isto, evidentemente, não se poderia passar no mundo orwelliano, em que os filhos são 'educados' a denunciar os pais, em que a razão de estado é a razão por antonomásia. Passa-se no mundo em que viveu Camus, em que para os intelectuais, como ele diz, a tentação comunista é "do mesmo tipo da tentação religiosa." O escritor que, em 1935, chegou a filiar-se no PCF dizia, na altura que " se podia encarar o comunismo como um trampolim e um ascetismo que preparam o terreno para actividades mais espirituais." (Wikipedia) Esta reserva 'individualista' parece dar 'objectivamente' razão à sua expulsão do partido dois anos depois, embora com a alegação de 'trotskismo'.
Como muitos 'fimdomundistas' de hoje, que trocam as suas frustrações pessoais pela condenação de toda a humanidade, Camus viu na militância partidária um meio de combater uma desigualdade que o afectava especialmente: a que existia entre os franceses da metrópole e os argelinos 'pied-noirs'.
A sua vocação anarquista emergiu dessa experiência liberta de falsas solidariedades.
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Esse desejo do fim do mundo encontrou a verdadeira 'solução final'. Porque todos os 'impuros' serão exterminados, sem outra forma de processo, e os 'mártires' gozarão das mil delícias do paraíso. Um tal programa, se se acredita nele (e por que não, se se paga com a própria vida?), é a recompensa de todas as frustrações sentidas por essa juventude, das pessoais, por sua própria culpa ou das que lhes são infligidas pelo seu meio social. Além disso, tem o prestígio da narrativa bíblica, com as punições divinas de proporções catastróficas, pela água ou pelo fogo.
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"Ele provavelmente sofreu as consequências de ter decidido as suas conclusões em 1848, antes de ter embarcado nas pesquisas necessárias para as justificar."
"Le Capital au 21e. siècle" (Thomas Piketty)
O autor refere-se, claro, a Karl Marx e aos seus 'Manuscritos' filosóficos de 1848, opinando que o 'Opus Magnum', escrito mais de vinte anos depois, seria uma tentativa de forçar o 'sistema económico' a corresponder àquelas premissas.
O termo 'embarcar' já traz consigo uma série de conotações teatrais (Molière, "Les Fourberies de Scapin" ou Cyrano de Bergerac, "Le Pédant joué") como o célebre refrão do "Que diable allait-il faire dans cette galère?"
A ideia é que o velho Marx 'embarcou', não numa galera turca como, supostamente, o filho de Geronte, mas numa fadiga intelectual que se mostrou, apesar de prolífica, ao mesmo tempo extremamente frustrante pelo seu óbvio desfasamento com os factos. "Das Kapital" ficou por concluir, o que nos impede de ter uma ideia sobre a coerência 'final' com os textos da juventude. O profeta teve um enorme sucesso. O homem de ciência, como era de esperar, não conseguiu convencer-nos de que foi outra coisa que um filósofo de sistema, como o seu amado-odiado mestre de Stutgartt.
A crónica de VPV, no 'Público', traduz o desencanto que hoje provoca em muitos de nós a comparência no 'banco dos réus' dos representantes máximos de um poder mitificado pela teoria. Peço escusa pela transcrição:
" Mas não fiquei tão desconsolado como agora quando passaram à minha frente na televisão as grandes figuras do capitalismo financeiro cá de casa (segundo a doutrina, o mais poderoso e o mais cínico) e os seus servos da gleba. Era então por causa deles que tínhamos odiado a Ditadura e amado o povo; por causa deles que tínhamos sofrido e também tremido; por causa deles que se fizera o PREC à custa da economia do país. Nunca fui um crente, mas mesmo assim a patética cara do Diabo – finalmente revelada – e a descrição das suas mesquinhas trafulhices foram um desapontamento e uma tristeza."
Zbigniew Preisner, o autor da música nos filmes de Kieslowski
Hanka mantém uma relação com o estudante de Física, depois de saber que Roman, o marido, tem de renunciar ao sexo. Ela não dá muito valor a essa ligação e não sabe que Roman vive por ela obcecado, a ponto de escutar as conversas telefónicas e de espiar o encontro dos amantes.
Quando recebe o primeiro alarme, rompe com o estudante, ignorando que o marido está a vigiar a cena. Mas, ao sair do apartamento, descobre, humilhado, um Roman "voyeur".
Segue-se uma separação temporária, de comum acordo. Porém, enganado pelo movimento do amante, Roman tenta suicidar-se.
É no hospital, que tem a prova de que precisava do amor da mulher. Hanka pensava que podia ter o amor, mais o quarto de hora de "espasmo e suor".
Este 9º episódio de "O Decálogo" mostra-nos também uma jovem doente que enfrenta um dilema: ser operada e poder vir a ser uma grande cantora, ou não o fazer, precisando de bastante pouco para viver (ela faz o gesto, deixando um pequeno espaço entre o indicador e o polegar).
É a admiração de Roman, que é o seu médico, pela música de Budenmeyer (Preisner?) e pelas possibilidades da sua voz que a levam a decidir-se pela operação.
Nem ela podia renunciar à música, nem Roman ao amor, sem cláusulas de salvaguarda.
"A solução, fazendo eco de Blinder e da sua defesa de um modelo como o da Reserva Federal, seria delegar poderes a instituições que, por desígnio, não são directamente responsáveis perante os votantes ou os seus representantes eleitos (Majone, 1996:10,3). Majone descreveu tais instituições como 'não-maioritárias' (...)
"Ruling the Void" (Peter Maier)
Voltámos, pois, à velha questão platónica. Devem governar os que são mais competentes na 'arte', ou os que são mais 'populares'? Platão, como se sabe, serviu-se do exemplo do piloto. Numa tempestade, estaríamos mais dispostos a entregar o leme (a conotação com os 'grandes timoneiros', de má memória, é inescapável) ao piloto ou a quem tivesse mais votos?
O filósofo tinha em mente, claro, uma sociedade muito menos complexa do que a nossa e pressupunha que a 'arte de governar' tinha como objecto um 'barco' conhecido. E hoje não é assim. A metáfora do barco e do piloto só serve para usarmos em expressões como 'estamos todos no mesmo barco', ou a do 'Grande Timoneiro', precisamente.
Apesar disso, 'mete-se pelos olhos dentro' que a intromissão de técnicos, especialistas ou simplesmente burocratas como o Sir Humphrey de uma conhecida série da BBC, no que 'deveria ser' ditado pelo voto popular, é cada vez maior. A União Europeia é o exemplo maior desse 'rapto' da Europa 'popular'. O 'sistema' das instituições comunitárias rege-se pela sua própria lógica e o que quer que se interponha é 'desvitalizado' como um dente supranumerário.
Estou em crer que a 'despolitização' crescente (rumo a quê? à 'domesticidade', sem dúvida) dos putativos eleitores não decorre do grande logro que não podem deixar de presenciar. Nalguns casos, o velho e revelho nacionalismo toma a vez do 'sentimento europeu', e é a única reacção.
O facto dos partidos se terem substituído à sociedade civil não podia por si só ser motivo da indiferença geral (a politiquice pode ser apaixonante, como o clubismo o é, se bem que aqui já estejamos um pouco fora do político). A realidade de uma transferência do poder dos partidos para a máfia financeira e para as instituições 'não-maioritárias', apesar da gravidade que apresenta e da grande frustração democrática que significa, tampouco me parece decisiva para explicar aquele 'alheamento' (termo que se deve distinguir do de 'alienação', no sentido marxista, porquanto não podemos conceber ainda uma 'saída do sistema').
Parece-me que o 'inquérito' deveria começar peo contexto tecnológico, o qual vai muito mais além da problemática de uma 'alienação' pelo consumo. Sinal de que o poder está a deixar de ser 'interessante'?
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Marcello Caetano |
Como seria simples se esta 'sensibilidade' fosse apanágio somente dos homens de esquerda!... Para simplificar a política é preciso cortar todas as pontes. Reduzir todo o espaço para a dúvida.
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Alexandria |
"Por que é que as pessoas não deveriam mostrar mais do que um perfil ao mesmo tempo?"
"Justine" (Lawrence Durrell)
Justine é uma personagem caleidoscópica. Será por isso que é misteriosa? Já alguém disse que a superfície é o que há de mais profundo no homem. Porque esta figura central do "Quarteto", personificação de uma Alexandria incestuosa e sexualmente ambígua, não tem um perfil, digamos assim, 'responsável'. Ela deixa-se ir como os papiros na corrente do Nilo.
Nem se pode dizer que seja uma espectadora do que lhe acontece. É uma incarnação meio voluntária da cidade espúria, miscigenada. Daí a reivindicação da pluralidade.
Não há dúvida que Durrell inventou esta cidade e convida-nos a ver nela o verdadeiro sujeito do romance.
Quando admitimos que a cultura e o clima do país moldam aquilo que somos uns para os outros, pelo mesmo passo recusamos que sejam 'determinantes'. A verdade é que apuramos o 'perfil' involuntariamente 'negociado' (ou traficado) com os outros, à custa do que poderíamos também ser.
É a esse sacrifício que Justine julga poder eximir-se...por endosso à cidade cosmopolita.
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Plínio, o Jovem (catedral de Como) |
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http://a406.idata.over-blog.com/448x303/1/65/80/86/Rentree2012/Refonder-ecole-republique.jpg |
O 'perfeito animal social' descrito por James terá morrido com o culto da análise psicológica. A integração social não pode ser perfeita se o indivíduo for sempre exterior a si próprio. Mas talvez, até relativamente há pouco tempo, a integração não estivesse ameaçada como hoje está pelo individualismo.