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'Querelle '(José Ames) |
"A conclusão de Agostinho é a de que não é necessário deixar-se impressionar pela descrição do tabernáculo bíblico (como forma do cosmo) porque, sabe-se, as Sagradas Escrituras falam frequentemente por metáforas, e talvez a Terra seja esférica. Mas, uma vez que saber se é esférica, ou não, não serve para salvar a alma, pode-se ignorar a questão."
“Aqui reside o paradoxo: a rejeição da organização tayloriana e a coroação da empresa humanista aceleram a desestabilização, a fragilização subjectivas. Quer seja na esfera privada ou na esfera profissional, por toda a parte a autonomia individualista paga-se em desequilíbrio existencial”
Gilles Lipovetsky (“O crepúsculo do dever”)
A disciplina e os esquemas mais rígidos não anulam a angústia. Segundo o modelo energético de Freud, apenas a deslocam, sob a forma de modificações somáticas.
A utopia de Taylor lembra-me, em “The killing fields” (Alain Joffé), a termiteira dos campos no Cambodja de Pol Pot, vigiada por crianças histéricas, que disparavam à menor suspeita de “heresia”. Com os seus lenços vermelhos e as suas metralhadoras pareciam a inocência conduzindo a morte, nesse paranóico regresso à pureza.
Parece que estamos muito longe da divisão racional do tempo, mas em ambos os casos é a razão que engendra os monstros.
O humanismo na empresa desemboca no impasse descrito por Lipovetsky. Só podemos ser livres, como o trapezista é livre, arriscando a queda a todo o instante.
Por isso a rede tinha que ser inventada. Mas hoje está esburacada pelo cepticismo e pela descrença.
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Thomas Edison |
"(...) as intuições correctas dos especialistas explicam-se melhor pelos efeitos da prática prolongada do que pelas heurísticas."
"Não há nada de mais perigoso para o espírito do que a sua associação com as Grandes Coisas."
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http://themetamorphisis.wordpress.com/category/metamorphosis-2/from-the-ashes/ |
"Se cada pessoa se concebia a si mesma como parte de um todo, não considerava a sua relação com Deus como meramente pessoal."
"Levantar o Céu" (José Mattoso)
Não admira que tivéssemos de começar por uma espécie de esconjuro da Idade Média e do que ela representava. É contra esse céu escuro que o novo Prometeu ergue o seu archote. Será preciso dizer que a Reforma luterana é o princípio, envolto em 'trevas' ainda, da 'descolagem' dessa totalidade não-humana, isto é, não-racional?
Hoje, como não podia deixar de ser, somos mais justos com esse tempo com que gostávamos de comparar todos os regimes políticos 'anacrónicos'.
Um sem-número de estudiosos deu-nos a conhecer a extraordinária riqueza cultural que, verdade seja dita, era uma premissa das catedrais que desde sempre admirámos. Mas, para além disso, a aparente redundância e a complexidade da sua teologia preparou-nos para o salto da razão e para a explosão da linguagem abstracta. O conceito de Deus, em particular, permitiu a unidade totalizante e um sentido à própria lógica.
No universo, não já realmente antropomórfico, mas que tem a forma da nossa razão, é natural que se conceba a relação com Deus como um diálogo entre espíritos, onde uma razão infirme se compara com o seu avatar religioso.
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(Michel Simon e Burt Lencaster) |
"Alain emprestou um dia 'A República' de Platão a Cancouët (o ferroviário sindicalizado), que lhe disse: "Não compreendi nada, mas sinto-me completamente mudado!"
André Sernin ("Alain, un sage dans la cité")
Não sei se hei-de comparar este aparente absurdo com o modo paradoxal, mas observado universalmente, segundo o qual aprendem as crianças e os que chegam à linguagem, ou com tantos exemplos em que 'não se fica com a ideia', mas se sente a pujante beleza do que não podemos reproduzir por palavras nossas (esta é, pelo menos a forma mais exterior da compreensão).
As crianças repetem as palavras antes de compreenderem o seu significado e, evidentemente, antes de as poderem 'explicar' na sua própria linguagem.
O ferroviário de Alain não é capaz de dar uma ideia coerente da obra-prima grega. Falta-lhe, mais do que os rudimentos da filosofia culta, o vocabulário e a leitura na sua própria língua. Assim, se ficou impressionado, foi um pouco como o que acontece com o que começa a ouvir música 'erudita' e ela lhe agrada, sem ser capaz de a trautear sequer (o que é o caso do melómano mediano que é, no entanto, capaz de referir o que ouve à sua memória musical).
Mas há mais. Cancouët sente-se transformado pela grande esperança nele do filósofo. Repete-se aqui a história de Sócrates desviando o jovem escravo do seu caminho para demonstrar que o espírito da geometria está nele antes de qualquer distinção social.
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Tony Blair |
"Blair transmite um ar de profunda convicção, mas ninguém sabe bem no quê. Ele não é tanto sincero como Sincero."
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Heráclito de Éfeso |
"O que é contrário é útil, e é do que está em luta que nasce a mais bela harmonia; tudo se faz pela discórdia."
Heráclito
O 'Obscuro', como era conhecido o Efesiano, não podia ir mais contra o senso comum. Porque, enfim, é a Concórdia que se quer que reine entre as nações, a união faz a força, etc., etc.
Mas se o que ele diz se aplica às ideias, então, não podia estar mais certo. A dialéctica, hegeliana ou não, prova isso mesmo.
Como fazer então com que o pensamento dividido e em luta contra si mesmo seja 'útil' e produza a 'mais bela harmonia' no mundo real em que os homens têm de viver?
A 'obscuridade', parece-me, estar no facto do filósofo apresentar 'a luta dos contrários' como algo que existe realmente. Na verdade, isso é apenas a consequência da debilidade do nosso pensamento que não representa as coisas abstractas ou naturalmente difíceis espontaneamente, mas por afirmação e contradição. Quanto a isso, não podemos estar certos de nada, só podemos tentar eliminar todas as objecções e chegar a uma espécie de consenso (que tem muito a ver com a consagração).
O que resulta desse debate é que pode ser útil e harmonioso.
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http://www.enigmes.tv/2012/pensee-de-groupe/ |
A Teoria dos Jogos faz muito sentido e os estudos sobre ela já contam com um Prémio Nobel. Mas funciona melhor com os Econs (o homem definido pela economia, como foi crismado por Richard Thaler) do que com os humanos de carne e osso. Pessoalmente considero o pensamento em grupo uma aberração.
De facto, o que se passa é que a primeira boa ideia que alguém avance é, por inércia, adoptada por todos os outros. O grupo acaba por funcionar como uma espécie de júri, capaz de decidir por maioria, mas não de inventar o quer que seja.
A experiência de Thomas Shelling do plano para o parque de estacionamento de professores é sintomática. O facto de não ter ido à primeira reunião permitiu-lhe verificar que 20 das propostas a que tinha chegado sozinho não tinham sido pensadas pelo grupo, que se rendeu à primeira solução.
Simone Weil dizia que em colectivo nem uma operação de somar se consegue pensar.
A democracia que não cria uma elite intelectual está pois condenada à demagogia.
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Phttp://larvalsubjects.wordpress.com |
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Claude Imbert |
"O verdadeiro, com efeito, distingue-se do bom - porque não tem qualquer função normativa; e distingue-se do belo - porque não admite nenhum grau."
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Cícero |
"O que haverá, com efeito, de mais doce para uma alma livre, generosa e nascida para as nobres fruições, do que ver a sua casa incessantemente ocupada pela chegada de tantos homens do mais elevado estatuto e de saber que isso não é de modo nenhum devido à opulência, à expectativa de uma herança, a algum lugar importante, mas à própria pessoa que esta honra se dirige? Digo mais: os velhos sem herdeiros, os ricos, os poderosos, são os primeiros a vir a casa de um orador jovem e pobre para colocar o seu destino nas suas mãos."
"Diálogo dos Oradores" (Tácito)
A eloquência, o poder da palavra, já foram tão decisivos na política como hoje são as sondagens e a votação nas urnas. Não deixou de haver oradores, claro, mas ninguém vai já a sua casa à procura de belas máximas e de bons conselhos.
O parlamento é o moderno avatar do fórum, resultado da selecção entre os partidos. Nenhum orador tem a liberdade de pensar só pela sua cabeça. A 'linha' do partido, dos porta-vozes, dos chefes de bancada condiciona os melhores 'tenores'. O conformismo e a demarcação recíproca são de regra. Especialmente quando peroram para a televisão, rapidamente se tornam mestres no espectáculo. A realidade tem de partir os écrãs.
Pensando bem, a época dos oradores 'livres' era ainda devedora da cultura oral. Quem poderia hoje competir com a Crítica e a Ciência mesmo no domínio das ideias políticas? Bastava a televisão servir-se duma dessas muletas para arrasar a mais extraordinária das eloquências.
O orador antigo não sabia até que ponto era retórico e manipulador. Hoje sabemos, mas esquecemo-lo uma e outra vez, especialmente quando a Comunicação o esconde com tanta eficácia.
"As nossas preferências são acerca de problemas enquadrados e as nossas intuições morais são acerca de descrições, não acerca da substância."