terça-feira, 31 de maio de 2016

O ANIMAL POLÍTICO


(George Orwell)


"Orwell era um animal político. Reduzia tudo à política...Não podia assoar-se sem moralizar sobre as condições na indústria dos lenços."

(Cyrill Connolly, citada por Simon Leys)

Conheci pessoas assim. E, se calhar, todos temos um momento na vida em que somos 'apenas' animais políticos. Claro que a política, enquanto profissão, é compatível com outros interesses, e só os que se deixaram 'deformar' por ela se tornam estranhos ao que é humano.

Um desses de que falo, era um operário, em férias do seu duro ofício e aprendendo rapidamente a adaptar-se à sua nova vida e à 'consciência de classe' determinada pelo círculo bem-pensante (ou à 'linha correcta' do momento) que ponderava, nessa altura, nos meios políticos e sindicais.

Esse meu amigo, numa discussão, tinha certezas monumentais. Uma delas era que, até no acto mais privado do indivíduo (cumprido no local que Proust destinava aos devaneios e ao onanismo), a política, tal como o 'alien' na barriga de Sigourney Weaver, tinha grandes dificuldades em conter o apetite do seu focinho não-humano. Também ele dizia que tudo era político. Contudo, essa era uma convicção que em nada mudara a sua personalidade e, até certo ponto, o seu comportamento. Era alegre, 'bon-vivant', e sendo tão 'doutrinário' parecia que nada o impedia de ser extrovertido e ecuménico. A doutrina não era de modo nenhum um fardo. Era mais uma farda, em que ele podia continuar, sem se sentir constrangido, uma pletórica sociabilidade.

Uma questão interessante que se poderia levantar, a propósito de George Orwell, o autor da famosa profecia que é o seu romance "1984", é a de saber se ele seria capaz de imaginar um futuro tão negro se não fosse a sua obsessão pelo 'tudo é política'. Não podemos esquecer que a 2a. Grande Guerra já foi uma 'actualização' desse futuro. Orwell não inventou o seu '1984'. Deduziu-o do passado recente, com o pessimismo que está associado à fórmula do 'tudo é política'.

O seu grande antecessor foi, talvez, Cervantes. Este autor do século XVII descreveu o mundo imaginado por um velho fidalgo, enlouquecido pelos romances de cavalaria. O seu tema não era de todo realista, mas dizia muito sobre todos nós. Também o pesadelo de Orwell é revelador da loucura que está por detrás da nossa razão.



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