![]() |
Puglia |
![]() |
Lord Acton |
Foi Lord Acton que disse que o poder absoluto corrompe absolutamente. Assim dito, não seria pela qualidade dos que o exercem que o poder corrompe. Ou então teríamos que distinguir entre corrupção e necessidade.
Até os adversários reconhecem que Salazar fez o que tinha a fazer nos primeiros tempos da prolongada crise que o levou ao poder. Mas terá pensado, depois da ordem restabelecida, que nada valia o risco de comprometê-la com inovações 'perigosas', e que, enfim, a ditadura se podia perpetuar indefinidamente graças à sua sabedoria. Poderíamos dizer que o ditador não se deixou corromper pelo dinheiro, mas pela sua ideia de magistério perpétuo sobre o povo português. Questão de poder, sem dúvida, mas sobretudo corrupção do juízo e da inteligência.
As grandes crises sociais não têm uma solução conhecida. Se a economia política, em tempo de paz relativa, é o viveiro de charlatães que enxameia a comunicação social e algumas universidades na moda, pode imaginar-se, os efeitos da mesma ignorância no descontrolo e no tempo acelerado de uma crise de regime, de modelo, ou simplesmente de ideias.
Utiliza-se muitas vezes a metáfora da bicicleta aplicada à Revolução (a mítica, evidentemente). Se a bicicleta pára, cai infalivelmente. Tem esta comparação o mérito de chamar a atenção para o papel da velocidade na reestruturação social. Os 'revolucionários' cedo vêem o seu plano ultrapassado pelos factos (na verdade, não se pode prever o futuro, pelo que o melhor meio para se obter a maior coincidência possível entre o plano e a realidade seja o de aumentar a velocidade.) Lenine estendido no soalho do Smolny para descansar entre os decretos, sabia que o sonho tem de correr mais depressa do que a desilusão.
Nesse momento, no pico da aceleração, a realidade não se mostra e tudo está, no melhor dos casos, conforme o desenho. Mas depois vêm as consequências que são atendidas, não segundo a humanidade dos líderes, nem a sua sensibilidade musical (Lenine coibia-se de se enternecer com as sonatas de Beethoven), mas segundo a urgência e a lógica da máquina administrativa e da organização básica.
A partir daí, os 'revolucionários' fazem como Salazar, deixam-se corromper. Além do mais, seguem uma lei natural: depois do esforço extremo, é preciso descansar.
![]() |
http://www.slowtwitch.com |
"(...) as intuições correctas dos especialistas explicam-se melhor pelos efeitos da prática prolongada do que pelas heurísticas."
Daniel Kahnman
Uma interpretação tem o seu próprio limite na subjectividade daquele que interpreta. Enquanto que a 'prática' (a 'praxis' para os marxistas é, como dizem, o critério da verdade) autoriza uma correspondência entre a teoria e o 'mundo'. Como se o conhecimento ganhasse um estatuto de autenticidade e de irrefutabilidade. É só isto que diz Kahneman?
Não. Ele diz outra coisa que é própria do acto criador. É o 'ir fazendo-se' da obra que melhor justifica as 'intuições correctas'. A ideia modifica-se de encontro ao material e aos problemas da forma e este processo é devorador de heurísticas.
Mas a 'prática prolongada' depressa se transforma em técnica e em instrumento se o mundo das ideias não impuser novos problemas.
A intuição correcta não pode ser, de facto, justificada pela prática.
"Durante algum tempo, esta horrível superstição foi reprimida, mas voltou depois a irromper; e não só se espalhou pela Judeia, o primeiro foco desta nociva seita, como penetrou em Roma, o asilo comum que recebe e protege tudo o que é atroz. As confissões dos que foram presos revelaram uma enorme turba de cúmplices, e todos foram condenados mais pelo seu ódio à espécie humana do que pelo crime do incêndio deflagrado na cidade."
(Tácito, citado por E. Gibbon em "Declínio e Queda do Império Romano)
Nero, acusado, talvez injustamente, do pavoroso incêndio de Roma, virou-se contra aqueles que, nas palavras do grande historiador latino, "já se encontravam estigmatizados com o labéu de uma merecida infâmia".
A História depois colocou a sede magnificente de tal "seita" no terreno do que foram os jardins do tirano.
Tácito não era um homem injusto, nem exagerado. O que ele chama de ódio à espécie humana era apenas o zelo da reforma cristã, exaltado pela crença de que estava próximo o seu triunfo, com o anunciado fim do mundo.
Nada de mais distante desse espírito do que a Igreja de hoje, pois ela é agora tão conservadora e "romana" como o próprio Tácito.
"Se não tivesse sido criada no bom momento, graças a certas circunstâncias históricas, uma burocracia eclesiástica e politicamente eficaz, por pouco não nos restariam quaisquer traços do cristianismo..."
![]() |
George Orwell |
"(...) se se alberga na mente uma lealdade ou um ódio nacionalista, certos factos, ainda que em certo sentido se saiba que são verdade, são inadmissíveis.
("Notas sobre o Nacionalismo", George Orwell, citado por Tony Judt)
É o mesmo sentido em que um homem que sabe que vai morrer de cancro não quer ouvir falar disso, aferrando-se a uma versão das coisas delirante que, apesar de absurda, lhe permite alguma hipótese de esperança. A esperança pode sempre revelar-se infundada, mas é melhor do que a sentença de morte. Há casos, evidentemente, em que o canceroso se recusa a ver no cancro uma tal sentença. É outra atitude.
As convicções políticas podem ser tão entranhadas que, se atacadas, não são consideradas como uma simples diferença de opinião. Representam, pelo contrário, uma ameaça às razões da existência que animam um indivíduo ou um grupo.
É comum chamar a isso fanatismo, fenómeno que se vê não só na religião, mas também na política e até no futebol.
O negacionista sabe em 'certo sentido' que, muitas vezes se defronta com factos e não simplesmente com opiniões. Mas persevera no seu 'erro' vital. Admitir certos factos é desfazer a sua própria vida.
Assim se comportava e, em Portugal ainda comporta, muito pessoal de esquerda, que prefere epitetar Soljenitsyne de traidor e mentiroso quando narra a sua experiência no Gulag...
![]() |
Heidegger em Taudtnauberg |
" O pensamento tem de descer humildemente à pobreza da sua condição provisória. Não pode, no melhor dos casos, fazer muito mais do que seguir a pista dos seus sulcos quase intangíveis na linguagem."
Martin Heidegger
É o filósofo que diz que a língua, entretanto, foi adulterada numa espécie de serviço público, como qualquer meio de transporte. A interpretação arqueológica a que dedicou o seu imenso labor, a subtil pesquisa dos 'sulcos', na linguagem do mundo pré-socrático, antes das ideias e das categorias dos clássicos da Grécia antiga, antes da própria lógica, parece uma questão de fé, ou melhor, de teologia.
O mundo heideggeriano é um 'verdadeiro' mundo, como o foi o mundo medieval, embora este tivesse sido um mundo vivido por gerações durante séculos e séculos. O tempo dotou-os de uma nova e comum dimensão. Desaparecido o homem medieval, morto o pensador de Todtnauberg, ambos os mundos são objecto de interpretação infinita.
Poderemos comparar um facto histórico com o sonho de um filósofo? Podemos, na medida em que ambos são histórias.
No fundo, ressuscitar o tempo de Parménides, de que há pouquíssimos vestígios, fora os que se encontram nos 'sulcos' da filosofia clássica, vem a ser uma tarefa tão impossível como a de 'dar vida' à Idade Média, apesar dos incontáveis testemunhos históricos, ou 'quebrar' os enigmas duma mente possuída pela sua ideia.
![]() |
Bruno Bauer |
![]() |
http://severalninjas.hubpages.com/hub/ |
"Ele tinha de novo, penosamente, como se procede ao ajustamento sobre um objecto próximo, de destruir esse sentimento de identificação à sua própria imagem. O eu é uma neurose intermitente, e o homem estava longe ainda de estar curado."
"Les particules élémentaires" (Michel Houellebecq)
A psicologia americana, num esforço de racionalização e de superação da teoria psicanalítica, 'simplificou' a classificação das doenças mentais ao abolir o termo neurose, sem dúvida, demasiado freudiano, e passando a relevar a síndrome e a teorizar sobre os sintomas visíveis. A dita simplificação elege a anxiedade como o princípio geral de definição das neuroses.
A anxiedade revela uma falha psíquica na adaptação do indivíduo ao meio ambiente. Assim se poderia compreender melhor a frase de Houellebecq. Cada 'desfocagem' do eu, por deslocação relativa do mundo (dos objectos próximos) traz anxiedade, e o eu é obrigado a 'ajustar' a sua imagem, processo durante o qual se 'ausenta'.
Mas esta 'intermitência' da neurose seria mais uma crise do eu 'ajustado' do que uma interrupção, ou um paroxismo da neurose.
O eu 'ajustado', em princípio, não terá sintomas de 'anxiedade'. Por outro lado, se quisermos dar toda a força à ideia do autor, não existe uma normalidade do eu. O eu 'ajustado' é sempre uma ilusão que mascara o desajuste permanente. O eu é o produtor da sua própria ficção.
http://www.viravolta.es/Fichas/Pregoeiro.gif
"Se fordes santo e vos faltar pregoeiro, poucos hão-de saber quando é o vosso dia."
(D. Francisco Manuel de Melo)
É uma verdade que nenhum político pode esquecer, por um momento que seja, nestes tempos em que não subir à tribuna ou não aparecer diante das câmaras equivale à irrelevância.
Mas no século XVII não se sabia que os pregoeiros podiam substituir-se aos santos e fazer de todos os dias o dia do pregoeiro.
Por isso, na democracia, existe a eterna tentação de se passar sem pregões e interpretar "mediunicamente" a vontade do povo.
Marguerite de Valois (La Reine Margot)
"Le Rouge et le Noir" (Stendhal)
Patrice Chéreau fez um filme sobre essa época tumultuosa ("La Reine Margot"). A intriga e a loucura do poder deixam-nos desses tempos um retrato impiedoso, em que os sentimentos e a piedade parecem ter abandonado os seres humanos.
Mas é preciso compreender Stendhal e o seu amor da energia. É que o país, depois da Revolução e das guerras napoleónicas estava envelhecido e exausto.
A centelha romântica que despertava a imagem duma rainha transportando a cabeça do amante era necessária a um carácter como o de Matilde para fazer dum pequeno susto de salão uma tragédia.
"É deste modo que aqueles a quem a força é entregue pelo destino, por com ela contarem de mais, perecem.
Não podem não perecer. Porque não consideram a sua própria força como uma quantidade limitada, nem as suas relações com os outros como um equilíbrio entre forças desiguais. Visto que os outros homens não impõem aos seus movimentos esse tempo de espera que é a única origem do nosso respeito para com os nossos semelhantes, concluem que o destino lhes deu plenos direitos, e nenhuns aos seus inferiores. Vão, por isso, além da força de que dispõem."
"A Fonte Grega" (Simone Weil)
A psicologia não esclarece a nossa situação no mundo, nem as nossas relações com os outros, se primeiro não compreendermos o papel da força, que em Simone Weil é muito mais do que uma noção física.
E é também dizer outra coisa do que o truísmo de que nenhum homem pode ignorar a sua barriga.
A medida e a desmedida completam a ideia da necessidade que vem dos Gregos.
E é como se, dissipada a nuvem da imaginação, nos pudéssemos pesar numa balança.
Aquele tempo de espera é a liberdade.
![]() |
http://ex-libris.over-blog.com |
"O objecto amado é simplesmente aquele que partilhou connosco uma experiência no mesmo momento, narcisisticamente; e o desejo de estar próximo do objecto amado é, primeiro, devido não à ideia de o possuir, mas simplesmente à de deixar as duas experiências compararem-se, como reflexos em diferentes espelhos."
"The Alexandria Quartet" (Lawrence Durrell)
Isto vem a dar no que diz a frase 'insolente' de Lacan: "não há relação". A comparação dos espelhos é, no entanto, mediadora. Esboça-se uma relação indirecta que só se aproxima do desejo de posse através da conotação narcísica. Tudo isto é, no entanto, falocrático.
Por outro lado, podemos encontrar na literatura a figura feminina correspondente. Andrée, uma das 'raparigas em flor' do romance de Proust, dá-nos a ver o que pode ser o outro narcisismo (a menos que queiramos considerar esse traço psicológico da personagem como... masculino).
Andrée, a amiga de Albertine, é incapaz de considerar qualquer prazer da sua amiga, causado por um favor ou uma prenda de terceiros como justificado. O seu 'pecado favorito' é ver a alegria no rosto de Albertine causada por um gesto seu. É isto uma pessoa egoísta? Mas se ela gosta de ver os outros felizes...
O caso é que só lhe interessa a felicidade por si provocada. Como o 'santo' que trabalhasse para uma carreira.
Toda a outra felicidade lhe causa ciúme e tristeza.
Podemos perfeitamente encaixar aqui a imagem dos espelhos de Justine, em Durrell.
![]() |
Chateaubriand |
"'O Senhor de Chateaubriand é de estatura bastante pequena, e no entanto elegante. o seu rosto oval tem uma expressão de piedade e de melancolia. Tem os cabelos e os olhos negros: estes brilham do fogo do seu espírito que se pronuncia nas suas feições"
François-René Chateaubriand (in “Mémoires d'Outre-Tombe", citando a baronesa de Hohenhausen, Berlim, 1821.)
Esta impressão mundana sugere à vaidade do autor de "Renée" o tom dos panegiristas de Luís XIV. A baronesa que encontrou o grande homem num baile no grande palácio do rei, não se fica pela pincelada romântica. Exalta "Atala" e “la Vie et la Mort du duc de Berry”. Reconhece o estadista. Para Chateaubriand era, no entanto, uma linguagem ultrapassada.
Em relação a nós, a mudança devia ser incomensurável. Nenhum jornalista, decerto, apresentaria uma celebridade tentando descrever o seu estado de alma. Há uma razão muito forte para isso: o império da imagem. Ao vermos, na televisão, um homem político, sabemos que a primeira regra que ele procurará cumprir é a de esconder o seu 'estado de alma'. Chateaubriand era, provavelmente, neurasténico (mais uma palavra fora de moda) e dava a ver a falsa soberba dos tímidos. Mas, na época, preferia-se interpretar esse aspecto como a 'profundidade' de um abismo literário tornado moda de sociedade, fenómeno que era suficientemente sério para converter o suicídio em obra de arte, na esteira do jovem herói de Goethe, meio século antes.
O que separa enfim o 'papel' que lhe atribuíam e se atribuía o homem de sociedade, da época do nosso visconde, do político-actor de hoje? Eu diria que é o grau de organização do próprio espectáculo.
A qualidade de romântico não era produzida por uma indústria (não certamente a dos editores). A imposição de um 'rôle' podia defrontar-se com a sensibilidade do gosto. Hoje, pelo contrário...
![]() |
dailykos.com |
"Corruptio optimi pessima."
A corrupção dos melhores é o pior de tudo. Não é só o poder e o dinheiro que corrompem. O medo também corrompe. Alguns pensarão que os 'melhores' não têm lugar numa democracia e que o que lhes acontece não é pior para todos os outros do que acontece à maioria.
É verdade que as elites não são reconhecidas como tal. Há um preconceito negativo contra a palavra que evoca o que depois da Revolução Francesa se chamou de 'Ancien Régime'.
De resto, todas as tentativas para criar uma aristocracia que não governasse contra o povo falharam. O povo está alertado para esse tipo de sofisma. Em política, todas as elites são espúrias.
A frase latina justificava-se plenamente no seu tempo. O passado guiava o futuro. Como notou Arendt, os Romanos contavam o tempo desde a fundação da cidade. Os melhores não eram os novos recordistas do estádio, mas os antepassados. "As vidas" de Plutarco inspiraram milhares de gerações com o exemplo dos antigos.
Mas a verdade é que a nossa época também tem os seus 'melhores', não no sentido de serem os mais ricos, ou os mais poderosos (para isso temos a revista Forbes), mas de serem os guardiões dos valores da humanidade. Recentemente, um papa veio lembrar esses valores e praticá-los segundo o seu dever. E tantos artistas e homens da cultura que não deixaram corromper o seu espírito. E os erradamente chamados 'simples' que não se deixam contaminar. São esses os nossos melhores. É esse o 'sal da terra'.
Estará essa elite do 'dever ser' e da integridade imunizada contra as armadilhas, o envolvimento e a palavra sedutora do que, por outro lado se chama também cultura, mesmo sem valores, ou com valores de mercado?
Mas basta um justo. A história já nos deu essa lição.
"A Greve" (1924-Serguei Eisenstein)
As imagens admiráveis da “Greve” desfilam diante de olhos desiludidos. Não importa, o prazer permanece intacto. Mas tal como em “Outubro”, uma palavra me vem à ideia: má-fé. Os processos formais para despertar o sentimento de classe deliberadamente desprezam a verdade. O Eisenstein desse tempo havia de rir-se destes escrúpulos.
O soldado a cavalo não esmaga, largando-a sobre o pátio, uma criança anónima, mas o anjo adorável que brincava em casa do operário em greve. E que dizer da caricatura dos patrões, como a de Kerenski no filme da Revolução? No entanto, não é a indignação ou o desprezo que nos inspiram esses traços. Porque têm a beleza das máscaras antigas e das personagens da ópera. Por que havemos de pensar em termos de realismo quando visivelmente o autor troçava disso?
Reduzir os conflitos pessoais à acção de forças sociais manobradas como descargas de música sinfónica, no meio do que surge, inesperadamente, o brilho solitário dum metal, eis a sua arte. Os rostos sujos e viris, a nudez dos sentimentos, a luz de Tissé, o tempo das imagens, formam uma torrente, irredutivelmente subjectiva, em que a marca do artista não deixa nenhum espaço ao reflexo do real e à objectividade.
Não faltarão os imbecis que se enganem no partido de Eisenstein. A história não vale nada. O que vale é o contar. A arte não é 'livre' da sua própria regra. O sentido do drama não podia ser reaccionário porque a forma o não consentiria. Para dizer o contrário devíamos demorar-nos na alma burguesa e reduzir a greve e os operários a uma abstracção. Era preciso que os donos da fábrica não fossem gordos, nem bebessem, não vestissem smoking nem fumassem charuto, nem que limpassem o sapato à folha das reivindicações. Mas então os operários deveriam ser pessoas e não figuras da massa coral. A unidade da obra exigia esse contraponto do colectivo proletário e do individual burguês.
Depois, há uma criança que se vai tornar na vítima ideal da brutalidade da polícia. Um operário que se enforca. É o nome da revolta, como no “Couraçado Potemkine”. E o quarto desarrumado do homem em casa. Aí o operário é isolado necessariamente, mas para viver o mesmo drama dos outros camaradas. Para realçar no conflito doméstico a força da unidade de classe.
"O travesti oriental não copia a Mulher, significa-a: não se gruda ao seu modelo, destaca-se do seu significado. A Feminilidade é dada a ler, não a ver: translação, não transgressão; o signo passa do grande papel feminino ao quinquagenário pai de família: é o mesmo homem, mas onde começa a metáfora?"
"L'empire des signes" (Roland Barthes)
A pulsão fotográfica que acompanha a caricatura do turista nipónico não é a continuação da leitura, desta vez aplicada ao seu próprio exotismo?
Quando pensamos no maior sucesso de Sophia Coppola e na felicidade do seu título, um único comentário assoma: o de que o corpo e as emoções, tais como os entendemos, se tenham fatalmente de perder na tradução. Porque a única tradução fiel é escrever, anular-se no jogo da linguagem.
![]() |
John Turner (from the Sketchbook) |
"'Você terá que lhes fazer compreender', escrevi eu, 'que a sua primeira lição consistirá em observar não o que Turner fez, mas o que ele não fez. Estas não são pinturas acabadas, mas estudos; tentativas, quer dizer, para alcançar o máximo resultado possível com os meios mais simples. São sobretudo pensados, e têm cada um o seu propósito definido, ao qual tudo o resto será sacrificado; e esse propósito é sempre imaginativo - para chegar ao coração da coisa e não ao seu exterior."
"Lectures on landscape" (John Ruskin)
John Ruskin (1819/1900) foi uma das principais influências de Proust (chegou a traduzí-lo para francês). A análise da arte, como se vê nesta passagem sobre os esboços de Turner, tem muitos pontos de contacto com a psicologia do Narrador proustiano.
Alain dizia que o autor da "Recherche" tinha o dom de observar o seu círculo mundano como os peixes num aquário. Podia-se, na mesma veia, recorrer às nuances de uma paleta impressionista, que também elas observam uma espécie de economia. Aquilo que, justamente, o Narrador não diz talvez seja, de facto, mais importante do que aquilo que ele diz. A dificuldade é que a palavra proustiana é exuberantíssima...
Se esboço há, no sentido de Ruskin, está na multiplicidade das 'pinceladas' sem um contorno definido. Os habitantes do 'aquário' , ao contrário dos peixes, 'falam pelos cotovelos'. Mas são quase irrelevantes por não dizerem ao que vêm. As personagens recuam para dar passagem ao verdadeiro actor: o tempo (perdido e recuperado).