terça-feira, 13 de setembro de 2016

OS AMANTES CRUCIFICADOS

"Os amantes crucificados" (1954-Kenji Mizoguchi)



A paixão de Mohei é secreta. Ele é um servo talentoso mas humilde. Não ousa levantar os olhos para a sua senhora. É uma paixão que o impede de aceitar o amor duma serva e a quem o sacrifício desta deixa indiferente.

No Japão do século XVII, as barreiras de classe são infranqueáveis. O escriba apaixonado por O-Haru foi degolado com uma perfeição caligráfica. E o adultério é o crime nuclear duma sociedade estratificada como esta. Porque o mais fácil e o mais natural.

Adivinhamos no suplício da crucificação, lento e espectacular, a fragilidade do poder. Que pode este contra o amor? A paz que a multidão admira no rosto dos amantes, essa alegria tranquila, exerce uma atracção que supera de longe o efeito da morte ignominiosa. 

Uma intriga cheia de coincidências e de má vontade dos deuses faz do servo e da senhora dois fugitivos. Ele, até à hora em que vai executar a última vontade de Osan, mantém secreto o amor humilhado. A mulher do rico fabricante de estamparias de Kyoto sabe que está perdida. As aparências condenam-na irremediavelmente. O seu futuro dependerá, no melhor dos casos, do perdão dum marido indigno. Decide pôr termo à vida. Então, no meio do lago – como uma anti-Aurora -, Mohei confessa o seu amor sem esperança. Ele diz: agora posso confessar-te este segredo: eu sempre te amei. 

A morte, eterna niveladora, aproxima as duas personagens condenadas pelo destino social a viver separadas por um biombo cruel. Osan compreende que é preciso viver, mesmo sem futuro. Retrospectivamente, a generosidade de Mohei parece-lhe transfigurada pelo amor.

A psicologia da servidão é varrida do seu espírito que quer salvar-se com o outro. Momento belo entre todos, o dessa conversão dos amantes num barco sem margens! Mohei julga tudo arrumado de vez pela força das coisas. É a razão triste que o condena. Porque os acontecimentos só na aparência são como ele pensa. Mas o instinto da vida e da felicidade leva a uma reacção inesperada a personagem feminina: depois do que disseste (depois de saber que me amas), mudei de ideias (não quero morrer)!

A razão já não pode julgá-los. A vida retoma todos os seus direitos. Que importa que passem as últimas horas a fugir da espada? Que corram de abrigo em abrigo até caírem nas mãos dos soldados? 

Na montanha, Mohei concebe a fuga para salvar Osan, a quem o mau marido quer perdoar. Vemos claramente que essa é uma ideia masculina, embora do coração. O desespero da companheira, pelo contrário, faz-nos logo compreender que o passado morreu para Osan, e que a partida do seu amante é pior do que a morte.

Mais forte do que as leis é esta fé que erige o outro em absoluto. Dessa maneira tudo perde o sentido, para só ganhá-lo a efabulação amorosa, contemplativa e ilógica. Seria demasiado fácil desprezar esta paixão da alma. Nós queremos que o homem dê sem se perder: como um vulgar industrial romântico de ideias sociais. 

Os amantes crucificados falam-nos da liberdade e do espírito por detrás do símbolo. E o sacrifício da sua juventude eleva-os da paixão sem forma e dos prazeres tristes.

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