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(José Ames) |
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Andy's Cambodia |
"Eu diria antes que é provavelmente impossível reclamar, sensatamente, a possibilidade de se estar no centro das coisas, de conhecer a intimidade intacta da vida (se se entender esta palavra não num sentido sentimental, mas na significação que lhe demos."
("O Homem Sem Qualidades", de Robert Musil)
Este conhecimento íntimo só pode ser suposto na imersão do indivíduo em qualquer estado de êxtase ou de dissolução, o que é, evidentemente, um conhecimento paradoxal, em que o intelecto se despoja das suas armas nas margens daquilo que o submerge.
É o sinal de que deve existir um outro tipo de conhecimento, 'activo' e instrumental, que tem a ver com a nossa projecção no mundo, a nossa silhueta ondulando pelos acidentes do terreno, que só nos permite um contacto exterior com um lugar e um tempo. É esse o domínio da razão geométrica e da linguagem.
Nós Ocidentais, chegamos a um ponto tal da nossa evolução que o 'conhecimento íntimo' se tornou numa ilusão e num anacronismo. E o 'véu de Maya' de que fala o hinduísmo se coseu à realidade, representando-a no seu todo.
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"Jacob e o Anjo" (Delacroix) |
"E Jacob ficou sozinho; e um homem lutou com ele até ao nascer do dia. E quando viu que não o podia vencer, atingiu-o na coxa; e a perna de Jacob ficou paralisada durante a luta. E disse: 'Deixa-me ir porque o dia amanhece'. E Jacob respondeu: 'Não te deixarei partir enquanto não me abençoares.' E ele perguntou-lhe: 'Qual é o teu nome?'. E ele respondeu:'Jacob.' E então disse: 'Não mais te chamarás Jacob, mas Israel: porque como príncipe tens poder com Deus e com os homens, e prevaleceste."
(do Livro do Génesis)
Esta é, sem dúvida, uma das passagens mais obscuras do Antigo Testamento.
A história parece roçar a blasfémia (como se podem comparar a força divina e a de um homem?). Mas não nos podemos esquecer que é através da figura do Anjo que Deus emprega a sua força, para experimentar Jacob no seu próprio terreno, que pode muito bem ser o do sonho. E como é que Jacob conhece o seu oponente senão pelo toque da coxa? Delacroix mostra-nos, no entanto, que o Anjo se defende e que a iniciativa é toda de Jacob.
O que importa é que tenha sido preciso travar-se uma luta e que dessa luta saiu um novo ser. É mais uma vez a estrada de Damasco. Paulo cai do cavalo, e muda de nome e de religião. Jacob luta com o Anjo até o amanhecer e é ferido na anca, recebendo o nome de Israel.
A técnica literária deste trecho coloca-o, como nos contos infantis, no domínio da criação poética. É inexplicável, onírico e rico de sentidos. Como se só por essa via - e não a da racionalidade e a da lógica - se pudesse lidar com a presença do divino. A dramatização de Deus como um dos actores na história 'sagrada' não é a do teatro burguês. Corresponde a uma necessidade de representação do irrepresentável.
Como é que a luta de Jacob com o Anjo se poderia conformar à descrição duma cena 'real'? Os 'milagres' e o onirismo, uma profunda obscuridade, não são acidentes numa narrativa plausível, são a própria essência do poético.
Mosteiro da Batalha
O mosteiro da Batalha não merece aquela vista da auto-estrada (nem a poluição desta).
Quem passa vê a forma agachada do que podia ser uma floresta de pedra ou a couraça dum animal mitológico.
Imagino o que seria a perspectiva do que talvez seja o mais belo monumento nacional do mais longe possível, como se vê, por exemplo, a catedral de Chartres.
Para ser devidamente valorizado era necessário abrir o espaço em volta para não tolher o seu ímpeto de altura.
Surpreendê-lo assim numa curva do asfalto e rasgado pelas guardas da estrada é um atentado à sua dignidade.
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http://www.contrepoints.org |
"As mulheres dotadas são observadoras impiedosas dos homens que amam; simplesmente, elas não têm teorias e não fazem qualquer uso das suas descobertas, a não ser que estejam exasperadas."
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Pietà de Florença |
"Savonarola, sem dúvida, admirava e amava Platão. Ainda assim, pensava que o o objecto da arte devia ser a edificação religiosa e mostrava esse ideal aos artistas 'no rosto de uma mulher piedosa, quando está a rezar, iluminado por um raio de beleza divina'. Miguel Ângelo desprezava tal arte feita para os devotos e deixava-a aos Flamengos. Tinha horror à sentimentalidade e quase ao sentimento. 'A verdadeira pintura", dizia, 'nunca fará ninguém derramar uma lágrima'."
Esquecemos, muito naturalmente, que aquilo a que chamamos Razão corresponde apenas a uma tradição filiosófica, e gostamos de pensar que a razão noutras latitudes se manteve sempre mais próxima da 'natureza', como o nosso 'senso comum'.
Nick Sloan (Redford), ex-activista dos anos sessenta, que vivia sob um falso nome, em Albany, educando a filha, é obrigado a fugir porque uma sua antiga 'companheira de armas' (Sharandon), cansada de se esconder, resolve entregar-se.
Ora, Nick não chegou a fazer parte do grupo que roubou o banco nos anos setenta, assalto de que resultou a morte de um guarda. Só Mimi Lurie (Julie Christie), que vive numa clandestinidade romanesca, pode testemunhar o facto, o que significa para uma 'idealista' impenitente, que voltaria a correr os mesmos riscos e a cometer os mesmos erros, porque o sistema não mudou, senão para pior, sacrificar a sua liberdade, a ilusão da sua superioridade moral, a uma velha amizade e ao futuro duma rapariga de 12 anos.
A corrida de Nick Sloan à frente da polícia que o persegue tem por único objectivo persuadir Lurie a redimir o seu nome.
Não interessa que as razões para não poder ser implicado como os outros sejam ténues. Nick não se arrepende dessas velhas ideias, nem dos erros que elas o levaram a cometer. Em vez disso, cresceu, diz ele. Tomou consciência de que há sempre vítimas inocentes. Enfim, apenas a sorte ditou a sua ausência da cena do crime, mas ele deixou de ter ilusões sobre o poder de mudança ao alcance dos indivíduos. A sua fidelidade ao passado consistia quase só na sua vida dupla.
No entanto, a entrevista com Mimi Lurie, apesar das suas palavras sempre iguais, duma retórica pseudo-revolucionária que hoje está ao lado do machado de sílex no museu de antropologia, calou fundo. Ele desmascarou a morte do 'bicho álacre e sedento' nos olhos da libertária. Por detrás da fachada, apenas a desilusão três vezes negada e três vezes rearmada.
Por fim, num gesto de generosidade ( a verdadeira homenagem à juventude e aos seus ideais, feitos para se desfazerem) rende-se aos 'justiceiros' do FBI, a essa justiça do sistema que não pode ser a justiça.
(kitsch: Derived from the German verkitschen etwas, kitsch means to 'knock something off'. Today it is synonymous with objects of bad taste that are so bad they're good in an ironic way. In the fifties and sixties kitsch was - and still is - highly collectable. Kitsch can be anything from flying ducks to Tretchikoff paintings and Elvis toilet roll holders. Definition from BBC News Online.)
"(...)Verifiquei que o fechar com chave de ouro era pôr o Marco Paulo a cantar a "Nossa Senhora". Todo o espectáculo teve aquele doce tom "kitsch" que eu tanto aprecio - dentro daquilo que Barthes sagazmente designou como "la fascination de la bêtise"(...)".
Eduardo Prado Coelho
A chamada música pimba acaba de entrar no kitsch, juntamente com alguns apresentadores de televisão.
Isso, por um lado, é mais um sintoma da crise dos valores estéticos (há-os fora da bolsa?). O mau gosto que era a característica principal do kitsch certifica todas as práticas, indiferentemente do gosto, e de reivindicarem o estatuto de arte.
Por outro lado, estamos perante uma difracção do juízo, como a que opera o tempo ou a mudança de contexto.
Pelo simples facto de não se fazer já cinema como os dos anos 50, por exemplo, esses filmes adquirem uma auréola de originalidade ( como a que a Benjamin atribuía à obra de arte, antes da sua reprodutibilidade), para além da mais-valia sentimental que também possam ter, evidentemente.
Portanto, incluir a música pimba e a televisão no kitsch é como se fôssemos extemporizados e postos fora do contexto, como se viéssemos de outra época e doutra cultura.
É, de certo modo, uma espécie de "branqueamento" da fealdade.
2001-2004 Karluozzi.com
O supermercado, com todas as suas ciladas, é um labirinto.
As paredes são falsas evasões e conduzem-nos sempre ao alimentar que, na maioria dos casos, foi a razão da entrada.
A lista de compras é uma espécie de fio de Ariane que nos permite encontrar a saída, se quisermos. Porque o problema é que, como todo o labirinto, o supermercado é o lugar do monstro. No caso, os arquitectos pensaram no nosso ventre que é a sede dos apetites (na tríade platónica) e foi para ele que o labirinto foi armado.
Devemos saber, ao entrar, que não somos apenas observados pelas câmeras, mas que, como insectos, estamos na mira de flores carnívoras.
Madrid (Plaza de España)
Quando Sancho pára a pensar em como há-de sair do aperto, na aldeia de Toboso, quando o amo o manda em embaixada a uma Dulcineia sem par que nenhum deles conhece, não reflecte como um simplório, mas como um ser dotado da razão que irmana todos os homens.
Ao escolher a primeira campónia, montada no seu burrico, que lhe surge no caminho, para contentar um espírito que em tudo vê artifício de encantadores que por todos os meios o perseguem, sabe que com um tal critério (o dos encantamentos) não há gato que não possa passar por lebre.
O discurso de alguns políticos faz de Sancho Pança o mais racional dos homens.