domingo, 26 de novembro de 2006

UMA VEZ, GUERRA E PAZ



No interior conhecem-se as grandes famílias: Bezuhov, Rostov, Bolkonski. Constelações com um brilho próprio.

Pierre, que é um bastardo, é em si um carácter colectivo. Um estilo. Nos Rostov, a ligeireza, a generosidade. Bolkonski, a honra, a nobreza, o pensamento. Os grandes espaços são teatro da guerra e da filosofia, ambas unidas no tema do destino e do mistério de Deus.

O firmamento interroga André caído em Austerlitz. Essa primeira morte, sagrada pelo comentário do próprio Napoleão e pelo desgosto da família, permite o regresso. Na noite de tempestade em que Lisa vai morrer do parto. Como se viesse, ele, trazer essa morte devida na sua pessoa. Ao cair nos braços de Maria, a irmã diz: - Que destino! – Como Pierre há-de resumir a tragédia de todos e reencontrar Natacha. A criança é uma mulher grave e amorosa. Essa frase volta: - fosse eu o mais belo e o mais inteligente dos homens, cairia a seus pés pedindo-lhe a sua mão…

O anjo cai no episódio de Kuraguine para elevar André, incapaz de perdoar. O orgulho dos Bolkonski é vencido pelo sofrimento. O velho príncipe chora abraçando André que regressa vivo de Austerlitz. Este, no leito de morte reconhece que não tem nada a perdoar a Natacha. Ama-a melhor. Ela tem tudo para sacrificar. Ele já nada.

A primeira confirmação muda os sentimentos de André. A irrequieta Rostov protesta-lhe um amor juvenil que ele vai sujeitar à prova do tempo. Só Pierre é incapaz de julgar. Senão inspirado, como na noite das fogueiras, quando um soldado francês lhe lembra a sua condição de prisioneiro. Quando o céu lhe comunica a sua força. Quando decide ser o libertador da Europa, esmagando a cabeça da águia imperial. Bezuhov é um cúmplice do estrangeiro. Na corte fala-se o francês do invasor. Napoleão é uma vítima do seu nome. Incapaz de alcançar a grandeza dos acontecimentos. Vencido pela paciência de Kutuzov. Uma cidade coberta de tesouros que valem tanto como areia. Uma capital de nada. O velho general mobilizou a natureza e o tempo. Tornou-se um verdadeiro aliado de Deus. O inverno persegue a retirada. O grande homem salva-se numa carruagem para Paris, abandonando à sua sorte o exército. Kutuzov teria feito toda a guerra sem homens. Mas a vaidade pedia vítimas. Um civil faz de Borodine um teatro divino. É Pierre, que ainda não compreende.

No filme de Bondarchuk, o pescoço de Natacha reflecte o incêndio de Moscovo. Como a reverberação da dor no tracto das palavras inúteis. É sem dúvida casual que essa parte do corpo dê o sinal da catástrofe. Mas ocorre-me toda a significância dessa superfície em que Eros e a morte se encontram. Lugar de corte: da vida e da palavra. É uma interpretação fetichista naturalmente alheia à obra. Pelo contrário, a cena do balcão em que a noite é comentada por Natacha e Sónia para o ouvido irónico de André é um símbolo genuíno. É dessa forma que se deseja ouvir uma confissão de amor ou a revelação do ser amado. Nessa espécie de altar celeste celebrado pela lua, é o monólogo mais puro que se intercepta. Sem intermediários.

A montagem paralela ”avant la lettre” tem um significado especial na morte real de André. A personagem é como que suspensa enquanto os diversos cursos do romance se precipitam. A granada espoletada pelo autor explode num tempo fora da acção. Em off, como se diz no cinema.

E agora um efeito completamente alheio ao livro e ao filme: no momento em que a jovem percebe que o moribundo da sala contígua é o príncipe, e caminha como uma visão branca em direcção ao leito, acendem-se as luzes. Intervalo. Ninguém se lembraria de interromper aí a leitura. Os capítulos são como os molhes da costa. Mesmo que não haja farol, as pessoas sentem a necessidade de os percorrer até ao fim. Agora o projeccionista interveio separando os noivos no tempo real.

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