sexta-feira, 24 de novembro de 2006

O LUXO VITAL




A forma humana perde-se no sono e no orgasmo. Mas um exige abandono total e o outro actividade. Em muitos aspectos, a excitação sexual é uma prova de atletismo que acaba no chão. E o céu levantado pelas multidões dos estádios.

Não é preciso pensar no célebre veneziano nem na pintura que dele fez Fellini para ver que cada homem tende a levar à desmesura aquilo que é o maior luxo que a natureza lhe concedeu. Esse excesso tem como modelo a máquina e não a harmonia do helenismo. Porém, é uma máquina que se destrambelha e pulveriza por fim na falta duma verdadeira função. E o prazer está todo nessa destruição das formas. Se eu quero, o meu corpo corre até ao limite. Aí, a sensação agradável sucede ao esforço. Mas se é o perigo que me faz correr, a ideia de repousar é o maior perigo. E a ideia do limite das forças. Estou em crer que quem, pela vontade se venceu várias vezes no curso dum grande e violento esforço, atinge uma espécie de imaterialidade e de transfiguração do prazer. O mundo deixa de ser um obstáculo e o sono está próximo, que afasta de divagações perigosas. Quer dizer que o próprio regime do corpo se apodera da vontade, quando começou por lhe obedecer.

Acontece com o sexo o que se passa com o poder em geral. A qualidade distintiva daquele órgão é a sua falta de economia. Ele é a criação do espaço e da rareza. Os encontros de acaso tornaram-nos prolixos. Somos uma espécie, contudo, que pensa a sua existência, e o pensamento do sexo multiplica. A capacidade de se dar prazer, independentemente da necessidade de reprodução, teria como inevitável consequência o desperdício e a morte, se não se fizessem sentir as leis do sistema nutritivo e não fosse imperiosa a acção. Só se mata de prazer quem viola o ritmo natural da vida e se dispõe a vivê-la num momento de intensidade terrível. De resto, a potência sexual é função da saúde física e mental, e deprecia-se com o uso infrene. E é como uma lei secreta das sociedades humanas que quando não há razões para adiar nenhum prazer, nem observar a lei do sacrifício sexual, só dos bárbaros pode vir a salvação. O bárbaro não se aborrece porque lhe falta tudo. Até a sua incompreensão da decadência é virtude e força.

É um milagre que o homem não vá até ao fim do seu poder. Não é assim que se experimenta tudo? Mas os homens precisam doutra filosofia. Felizmente o poder absoluto é quase uma utopia, perante um escravo como Epicteto.

Ao levantarem-se os tabus sobre a sexualidade, a sabedoria descobre que o homem não é livre. Que não existe senão pela lei moral. Mas é verdade que o sono nos reconcilia todas as noites com o animal misterioso.

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