quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

O ARGUMENTO DE MOLIÈRE

("La mort de Louis XIV")

Se a 'nouvelle vague' não tivesse morrido há muito, Jean-Pierre Léaud encarnando um Rei-Sol afundando-se nas trevas, seria o rosto dessa morte. O adolescente dos '400 coups', que quebra a vitrina do cinema para roubar as fotografias de um filme, aparece no último Alberto Serra como uma massa pastosa na sua enorme juba empoada. À fenda dos olhos ninguém assoma que, de perto ou de longe, lembre a personagem histórica do Grande Rei. O cenário é o quarto do moribundo, quase do princípio ao fim. O passado foi deliberadamente posto de lado. Apenas o homem actual, ou o que resta dele. O amor pelos seus cães, uma decisão adiada sobre a renovação de um porto, mais como uma última veleidade de poder do que um acto de prudência, a comida recusada, cada vez mais.

Quase nada 'para meter o dente', ainda por cima quando se sabe que é tudo 'suposto' e que parece que apenas a cena dos galgos se baseia em testemunhos do acontecimento. As 'Memórias' do duque de Saint-Simon foram decerto valiosas para captar o espírito da época (ver a entrevista do 'Expresso'). 

Mas o filme não acaba com a morte de Louis. E ao longo da história, os diálogos mais interessantes são entre Fagon e o Senhor de Bouillon e, entre o primeiro e os médicos da Faculdade de Paris. O monarca absolutista deixou-se cair nas mãos de um médico, Fagon, que até ao fim negou a evidência da gangrena na perna esquerda do rei. A dieta por ele prescrita seria considerada aos olhos de hoje um verdadeiro veneno, o seu diagnóstico criminoso. Mas ninguém realmente sabia como curar o rei. As hipóteses eram fantasiosas e não valiam mais do que a gongórica receita de um charlatão de Marselha chamado ao caso. O doente concordou, perante a sentença de Fagon, que o homem devia ser imediatamente preso.

Fagon opôs-se primeiro a que a Faculdade fosse ouvida. Respondia a essa ideia com Molière. Os médicos não sabiam nada de nada, a não ser, talvez, o seu latim.

Mas Fagon, apesar disso, não estava acima deles. Falhou rotundamente contra o bom-senso e, na cena que fecha o filme, reconheceu o fracasso e que nem sabia a causa da gangrena que nunca quis admitir. 

Concluiu que se devia aprender com o 'erro' e tentar fazer melhor para a próxima.

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