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(José Ames) |
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"A Flagelação de Cristo" (Caravaggio-Museu de Capodimonte) |
"Causou riso ao bacharel a simplicidade da ama, e mandou o barbeiro ir-lhe dando daqueles livros, um a um, para ver de que coisa tratavam, pois podia dar-se o caso de se encontrarem alguns que não merecessem o castigo do fogo. "Não", disse a sobrinha, "não há por que perdoar a nenhum, porque todos têm causado dano, e o melhor será deitá-los fora pelas janelas para o pátio, e fazer um amontoado deles, e pegar-lhes fogo, e se não, levá-los para o curral, e alí se há-de fazer a fogueira, para o fumo não ofender." O mesmo disse a ama: "assim era"."
"Don Quijote de la Mancha" (Cervantes)
A sobrinha do 'Cavaleiro' atacava menos os livros do que o hábito da leitura, que, segundo ela, tinha dado a volta ao miolo do tio. Era, além disso, a única maneira de poder controlar o seu comportamento, dado que, ao que suponho, não fosse capaz de distinguir entre um perigoso romance de cavalaria e um manual de farmácia.
Para o censor fanatizado, toda a leitura é potencialmente suspeita. A passagem da leitura em voz alta à leitura silenciosa foi um 'passo gigantesco' para a liberdade do pensamento.
Toda a ditadura abomina esta forma de leitura quase tanto como o voto secreto. Mas, longe de ser uma sofisticação moderna, esta repressão do 'estar-consigo-próprio' já era natural no tempo da sobrinha de Dom Quixote. É um reflexo do poder, qualquer que ele seja. No nosso 25 de Abril, o único estado virtuoso era o de 'mobilizado'. A 'desmobilização' favorecia sempre o 'inimigo de classe.'
Mas os tempos estão a mudar, graças à tecnologia. Não para o desenvolvimento da consciência individual (sucedem-se os certificados de óbito dessa consciência), mas para uma espécie de tribalismo inteligente. Deleuze e Guattari, no 'Anti-Édipo", falavam num 'corpo sem órgãos'. Onde estaria, então, a 'sede do poder' ou a da inteligência? É a História que sai pela esquerda baixa.
"É preciso compreender, dizia Beckett, que Joyce tinha chegado ao ponto de considerar a queda de uma folha como um acontecimento tão aflitivo como a Queda."
"A bicicleta de Leonardo" (Guy Davenport)
Passe o trocadilho da queda. Não penso que se possa exagerar sobre a propensão do escritor para preferir o seu mundo de palavras que faz sentido (pelo menos para ele) ao mundo real (inter-subjectivo, na verdade). As duas espécies de queda têm, em qualquer caso, uma afinidade no texto que não pode ter a realidade que elas representam.
O Dia de Bloom (a personagem do "Ulisses" joyceano é objecto dessa homenagem literário-turística que é o Bloomsday) é apenas um daqueles imprevisíveis ricochetes da literatura na realidade, mas está aí para provar que os dois mundos não estão, de facto, separados. Podemos entusiasmar-nos ou afligir-nos com uma ficção (que, ao transformar-nos, de facto, ganha foros de realidade) ou com um facto que, é verdade, sempre fazemos nosso, quando o 'processamos', para falar na linguagem da técnica.
O que queria, pois, dizer Beckett, segundo Davenport (um dos escritores preferidos de Steiner)? Não é a 'equivalência geral' das palavras na literatura que impede o escritor 'obsessivo' de respeitar as diferenças obrigatórias da convivência humana.
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"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)
A razão diurna empobrecida, que expressão admirável! Contudo, a noite traz consigo o medo primordiai, os fantasmas da imaginação. Mas eles são os monstros que nas lendas antigas guardavam a entrada do Céu e do Inferno. Vencidos, toda a nossa percepção muda radicalmente.
As pessoas, em geral, fogem de situações como esta. Agarram-se à sua rotina, ao seu mundo pré-fabricado. Tapam as frinchas das janelas e das portas para não entrar a angústia. A angústia de estarem sós consigo mesmas, a angústia de estar sobre a terra escurecida sem um néon por perto. Mas, às vezes, o pânico instala-se na própria lâmpada, como num filme de David Lynch.
O intenso pressentimento da terra. É contra ele que trabalha afanosamente, a razão diurna. A imagem mais reveladora é a que nos transmite o facto de, em muitas cidades, a palavra noite ter sido apropriada para significar a espécie de vida 'nocturna' a que, hoje, nenhum jovem que se preze se quer subtrair.
A Grande Presença está sempre vigilante e como que triste por não lhe dedicarmos um pensamento. A pior censura não é a que nos impede de falar, mas a que nos 'põe a falar'. Dizia Pasolini, por outras palavras.
Agustina, citada por Bénard da Costa, disse algures: "A justiça é uma coisa furtiva como um ladrão na noite."
Se assim for, isso é dizer que ela é mais do domínio da graça do que do da lei. Que espécie de justiça, então, é servida nos tribunais que pretextam, já não, evidentemente, o seu carácter sagrado, mas a sua necessidade primordial? Sem lei não existe sociedade digna desse nome. Se há algum poder que parece estar acima acima da política, mesmo numa sociedade democrática, é esse.
Mas não serve necessariamente a justiça. A segurança vale mais. Perdida esta, mesmo o que restava de justiça na lei deixa de contar.
A figura do ladrão furtivo tem, claro, uma conotação evangélica. Ora, o ladrão vive fora do que é tido como lei. Como pode a justiça ter alguma coisa a ver com o seu 'método'?
É talvez porque a justiça não é uma instituição (não podia jazer sob a laje de nenhum mausoléu). Ela tem qualquer coisa de comum com o verdadeiro saber. Nunca o saber alcança o estado de adquirido. É sempre preciso recomeçar o que julgávamos já sabido.
Os 'sábios' que dizem outra coisa do que disse Sócrates e que 'raramente se enganam' têm um nome na nossa tradição. São fariseus.
"(...) Isso mesmo era expressamente afirmado pelo rei (Afonso II) quando dizia que "a nós pertence fazer mercê aos mesquinhos e os defendermos dos poderosos"."
("História de Portugal", de Rui Ramos & al.)
O monarca era, no século XIII, um poder travado e discutido por outros poderes, como o dos senhores feudais e o da Igreja.
Os 'mesquinhos' de então deram lugar ao 'proletariado' do marxismo, e o Estado constitucional e liberal viu-se obrigado à mesma função 'paternalista' contra o poder económico e político, através, sobretudo, da legislação social.
O rei tinha um interesse evidente em apoiar-se no povo e na burguesia para alcançar uma posição indisputada, até pretender confundir-se com o próprio Estado, como aconteceu no absolutismo. A partir dessa altura, a monarquia já não precisava de ninguém e pôde entregar-se ao seu irremediável declínio.
Um paralelo se apresenta com a sorte da monarquia e a do Estado moderno capitalista. Os novos poderes precisam, evidentemente, do Estado, que se tornou pouco a pouco coisa sua, sem prejuízo de proteger os 'mesquinhos', por motivos de segurança. Já Alain observou que o interesse do 'senhor' é tratar bem os seus escravos, olhar pela sua saúde, não menos do que é do interesse do ganadeiro alimentar e acomodar bem os seus touros de lide. Por que seria esse meio de riqueza desbaratado e desvalorizado?
Esta fábula podia ser a da 'luta de classes', mas sem uma lei histórica linear por detrás, com toda a esperança justificada.
Talvez que o discurso que se aproxima mais da realidade seja o do protagonista da magnífica série americana "True Detective", Rust Cohle, e a sua teoria dos ciclos. O mundo nunca será um lugar ideal.
"(...) vive escondido, a fim de poderes viver para ti. Vive ignorante daquilo que parece mais importante para a tua época. Põe entre ti e ela pelo menos a espessura de três séculos.
(...) Hás-de querer socorrer também: mas sejam apenas aqueles de quem compreendes a miséria porque só têm contigo uma mesma alegria, uma mesma esperança... que sejam os teus amigos; e somente da maneira como vens em ajuda a ti mesmo."
"A Gaia Ciência" (Friederich Nietzsche)
A profissão de fé dum egoísta, ou de alguém que não quer enganar-se a si próprio?
O efeito mais visível da inflação dos media é que parece aumentar a nossa impotência à medida de que dispomos de mais informação e de mais imagens.
Limpar a soleira da nossa porta surge já como um programa ambicioso.
Este discurso vai, porém, contra toda a crença no dever e na responsabilidade.
E se, desde Nietzsche que há uma alternativa, no Ocidente, à ideia de Deus e ao platonismo, é preciso que a parábola de Zaratustra deixe de engendrar monstros.
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Afonso Costa |
Afonso Costa |
"(...) mas desse modo, precisamente, a inteligência terá perdido tudo da sua dignidade. Será sem dúvida necessário ser inteligente, mas, ao mesmo tempo, isso será coisa tão comum que um espírito mais nobre sentirá tal necessidade como uma vulgaridade. Ser nobre significará talvez, então, 'ter ideias loucas na cabeça.'"
(Friedrich Nietzsche, citado por Camus)
É isto o grau de loucura que preconizava Pessoa? Nada obsta a que o 'cadáver adiado que procria' seja inteligente.
A temática do herói está bem presente nesta vontade de distinção. Mas o super-homem poderia contentar-se em pensar e agir contra a razão comum?
Na verdade, a aristocracia histórica impôs-se pela sorte das armas e pela manutenção do poder, eficamente servidas, assinale-se, pela razão comum. E é o que a tecnocracia continua a fazer, do modo mais impessoal possível. A razão não pode ficar de fora deste debate, mas ela fornece armas a todos os campos. É exímia, como já o disse Descartes no 'Tratado das Paixões' ( obra que Alain já considerava imerecidamente desconhecida), em emprestar um ar razoável a todas as nossas 'reivindicaçōes' infundamentadas - pelos vistos, foi assim que muitos leram o livro de Louçã & al. sobre a Dívida.
Finalmente, a nobreza de carácter de que nos fala o filósofo do Zaratustra, resplandece como um astro maligno em qualquer democracia. Pode ser 'namorado', como na meritocracia, e na elite imanente a qualquer sistema. Claro que Nietzsche nada nos diz sobre os privilégios dos poucos (que é o que fica do heroísmo de um tempo).
A verdade é que tudo deve repetir-se desde o início. Assim, a nobreza separar-se-ia do poder instituído e dos seus castelos e bastilhas (há dois dias, a propósito, passou o 'Quatorze Juillet')
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Píndaro |