domingo, 30 de setembro de 2012
O HOMEM DOS GATOS
"Conta-se que, quando lhe disseram na América que
não deixava sair os chineses do país, teria perguntado 'mas quantas dezenas de
milhões de chineses estariam dispostos a acolher na América?' E numa outra vez,
a quem acusava os Americanos de implantarem a sua indústria na China para
explorar os trabalhadores chineses respondera: 'mas por que outra razão pensam
então deveriam vir para a China?'"
(Giovanni De Sio Cesari)
O articulista diz com razão que todas as revoluções do
século XX falharam: 'falhou o nazismo, o comunismo, a revolução passional
sul-americana e até os governos 'revolucionários' dos países ex-coloniais por
certo não realizaram a esperança, por fim Gandhi foi posto em
'banho-maria'." Todas, excepto a
iniciada por um político quase desconhecido, sem carisma nem dom de palavra:
Deng Xiao Ping.
Hannah Arendt, ainda antes da implosão soviética,
considerava que, depois do falhanço da 'mãe de todas as revoluções modernas', a
Revolução Francesa (apesar da célebre tríade - Liberté, Égalité, Fraternité -
estar inscrita em todos os monumentos públicos), só a Revolução Americana tinha
vingado.
É talvez cedo para dizer se a retórica comunista
continuará a ornar a arquitectura chinesa de amanhã, mas podemos todos já hoje
constatar que a revolução chinesa se triunfar, se esse grande país continuar a
ter a importância mundial que já teve até ao final do século XVIII, isso será à
custa do ideal comunista.
Como Deng, magistralmente, soube conciliar a doutrina com
a sua subversão na prática, privilegiando o que, afinal, deveria ser o
desiderato de todas as revoluções: o bem do povo, assim os paradoxos da China
dos nossos dias são as 'linhas tortas' dum futuro mais esperançoso.
sábado, 29 de setembro de 2012
O GOSTO À DERIVA
"A adoração do bezerro de ouro", de Nicolas Poussin |
"O planeamento internacional das exposições individuais em galerias americanas e europeias, e a compra sistemática das obras pelos museus estaduais e por grandes instituições bancárias condicionaram radicalmente o trabalho dos artistas, contribuindo ( de um modo que ainda não foi bem estudado) para as estratégias de legitimação sem discurso; nomeadamente através da contaminação extraordinária do valor estético pelo valor monetário; e da emergência mediática de um gosto universal (porque planetário) de massa: o kitsch. Num certo sentido, é o fim da estética, o que aumenta ainda a confusão."
José Gil ("Sem título")
Estive hoje a ver o 'site' de Paula Rego. O seu estilo de exploração realista dum grotesco feminino, duma atmosfera sensual pesada e sufocante, metáfora do político como aberração, a fealdade dessas pernas e desses joelhos, desses pés, num horizonte desprovido da palavra, não se pode dizer que seja um retorno a nada, porque esta figuração é moderna ( o código é o do "vale tudo", nas palavras de José Gil) e original (as fases anteriores da pintora atestam uma genealogia).
Como observa o filósofo, falando dos anos 80, "cada artista vale agora por si, independentemente do valor dos outros, que se legitimam curiosamente também por si, por não exigir discurso legitimador" (característica, também da escrita bloguística?).
Por outro lado, aquela legitimação sem discurso é cada vez mais preponderante.Na "confusão", justifica-se tanto a parábola do rei vai nu, com uma criança a dizer alto o que todos pensam de alguma pintura que hoje se vê em certos museus, galerias ou exposições, como se justifica o lugar-comum do génio incompreendido.
Pela força das coisas, a bolsa dos valores artísticos vai obrigar as futuras gerações a uma contínua reversão dos valores e a reescrever, uma e outra vez, a história da arte.
Moisés não pára de quebrar as tábuas da lei de encontro ao bezerro de metal.
sexta-feira, 28 de setembro de 2012
O PROBLEMA DE FUNDO
(Jeremy Rifkin) |
"O mesmo fenómeno ocorre hoje. Os ganhos de
produtividade trazidos pelas revoluções da informação e das telecomunicações
estão finalmente a ser sentidos. O problema é que virtualmente todas as
indústrias se confrontam com uma global subutilização da capacidade e uma
insuficiente procura do consumidor. Os fabricantes americanos reportaram
estar a utilizar menos de 73% da sua capacidade em Outubro de 2003. Mais uma
vez, nos EUA, o crédito ao consumo tornou-se o medíocre paliativo, um modo de
manter as máquinas da economia em aceleração, pelo menos por um tempo."
"The end of work" (Jeremy Rifkin)
Marx dizia que o capitalismo, pela maximização dos
lucros, engendrava uma contradição insanável entre o modo de produção e as
relações de produção. Sabemos como a sobrevivência e o dinamismo do sistema
defraudou todas as expectativas 'beatas'.
O chamado Estado Social, nas suas diversas formas, foi o correctivo necessário a que aquela
contradição não se tornasse mortal para o sistema.
Mas Rifkin chama a atenção para uma outra contradição que
realmente põe em causa as relações de produção e o modo capitalista, não a que
poderia estar na origem duma revolução social, mas a que provém da 'menina dos
olhos' da modernidade, causa próxima do grande incremento do consumismo: a
tecnologia.
A revolução causada pela electricidade que veio de onda
de choque em onda de choque a resultar na subutilização dos meios produtivos e
no recurso desenfreado ao crédito ao consumo que geraram a crise dos anos 20 do
século passado é como que o prefácio da crise golbal que hoje vivemos.
As dificuldades em abordar esta relativamente velha
'contradição' do capitalismo são mais do
que óbvias. A inovação tecnológica é uma força independente que se sofre como
os caprichos dum deus menor.
Tal situação por si só destrói a argumentação do novo ou
do velho liberalismo. Porque não se pode juntar o desenvolvimento 'anárquico' da
tecnologia com os seus efeitos imprevisíveis, por exemplo, sobre o emprego, e as
diabruras dum mercado desregulado.
Afinal o viver 'acima das suas possibilidades' não é uma
originalidade nacional. Talvez seja mais adequado dizer que foi a solução tosca
que o capitalismo congeminou para responder ao problema de fundo.
quinta-feira, 27 de setembro de 2012
USURA
"(...) enquanto os arquiduques morriam com uma bomba
nos joelhos, dez milhões de homens passavam ao matadouro, seis milhões de
outros se faziam mutilar e os bancos emprestavam a juros acumulados somas cinco
vezes superiores à massa monetária em circulação no mundo. Ah, os bancos!
Solenes, forrados, sagrados."
"Da Vinci's Bicycle" (Guy Davenport)
Isto faz parte duma fantasia sobre Walser e a Primeira
Guerra Mundial. Mas, no que aos bancos diz respeito, reconhecemos a impressão
digital. São mesmo assim. Mas os banqueiros 'só' têm sobre o resto da
humanidade o poder de representarem todas as reincarnações satânicas do
dinheiro, muito para além da sua função 'institucional'.
A simbólica do ouro cuja importância se pode verificar em
todas as civilizações está presente no poder que se atribui ao dinheiro. Mas o
facto da 'alma dum mundo sem alma' se ter tornado 'abstracta', sem ligação à
experiência infantil (na visão freudiana) parece tender para uma maior
'desumanização', a par dum domínio de sistema, que estabelece as condições
favoráveis a um jogo da sorte, com pseudo-banqueiros.
A 'economia' independente da realidade é a ideologia dos
novos usurários. Eles não trabalham já para 'maior glória de Deus', mas para os
seus bónus. A responsabilidade pessoal num sistema que opera à velocidade da
luz e que tem de confiar em especialistas do algoritmo financeiro para ter um
pretexto de racionalidade, equivale à 'confiança' no sistema e justifica, por
parte dos pretensos decisores, o escandaloso serviço de si próprios.
A Banca tornou-se para os 'happy few' um sistema auto-colector
no centro do furacão económico.
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
CÂNDIDA
Soares de Passos foi um expoente daquele romantismo mórbido com um lugar merecido na nossas selectas. É nele que penso quando subo as escadas do pequeno cemitério de Valongo, para copiar estes versos, de ano para ano menos legíveis (em todos os sentidos):
A estes cansados olhos te escondeste,
Filha chorada sempre em que eu achava
Meu porvir que morreu quando morreste.
Tu por quem eu só a vida amava (?),
Anjo pede p'ra mim ao Pai celeste
Em paga deste amor, desta saudade,
Um lugar junto a ti na eternidade.
Assim, uma menina de seis anos, Cândida Inocência de seu nome, deixava esta vida, em 1849, um ano depois de Marx e Engels terem escrito um texto célebre, dando início a um movimento de renovação das ideias sociais que iria mudar a face do mundo.
Estes dois acontecimentos, sem nenhuma ligação entre si, sempre me impressionaram, como se aquela poesia simbolizasse uma época que se despedia, na esteira dum anjo e se começasse a ouvir o "allegro con furia" do Manifesto.
terça-feira, 25 de setembro de 2012
A CANÇÃO FRIA
"The cold song" (Andreas Scholl)
"Que posso então fazer pela alma que me habita tal
um enigma por resolver?"
Novalis (citado por Ágata, personagem de Musil)
Pergunta 'finissecular' que exprime todo o cansaço do
ser. A alma aparece nesta Cacânia da Europa central como um prestigiado, mas
decadente testemunho dum mundo que já foi.
A sua importância central na civilização judaico-cristã
perdeu-se sem se dar por isso. A sua inutilidade para o mundo moderno (pois que
a maior parte de nós vive "sem se colocar essa hipótese", como um
astrónomo célebre disse a Napoleão a propósito do lugar de Deus no seu sistema)
é uma daquelas evidências de que não se podem tirar todas as consequências por
serem falsas.
Assim, Ágata, ociosamente, se pode perguntar o que pode
fazer pela sua alma. É óbvio que ela nada tem a ver consigo e o seu valor é o dum problema estético.
Porque é uma pessoa culta, sente-se na obrigação de a
chamar à vida, inconsequentemente.
A alma responder-lhe-á, sem dúvida, com as palavras da
"Cold song" de Henry Purcell:
"What power art thou, who from below
Hast made me rise unwillingly and slow
From beds of everlasting snow
See’st thou not ( how stiff )
and wondrous old
Far unfit to bear the bitter cold,
I ( can scarcely move or draw my breath )
Let me, let me freeze again to death."
Let me, let me freeze again to death."
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
O INDIZÍVEL
Umberto Eco |
Umberto Eco diz que Dante "evitara o xeque da poesia
fazendo precisamente poesia do xeque, que não é poesia que quer dizer o
indizível, mas poesia da impossibilidade de dizê-lo."
Isso corresponde a um horizonte que a contemplação não
pode alcançar. Porque há maior limitação em querer 'traduzir' o 'indizível' com
a má consciência de que somos obrigados a traí-lo e a tomá-lo pelo que não é (
aqui se estabelecendo uma relação 'impossível' com a verdade) do que em dizer
como a impossibilidade nos afecta.
O 'indizível' transcende o misticismo e desafia no seu
centro o agnóstico. E pode dizer-se que este 'contornar" do problema do
ser por parte da poesia não vai sem que esta crie, ao mesmo tempo, o seu
próprio indizível.
Talvez apenas o silêncio (e a música) nos permitam
abordar sem artifício o que não podemos dizer.
domingo, 23 de setembro de 2012
A MONOTONIA
Red (Mark Rothko) |
"(...) e, como é sabido, não admitia que o classificassem de "colorista".
No entanto, também disse, numa exposição, que a cor "era tudo o que ali estava mas que não (era) contra a linha. Se a utilizasse, ela não estaria à altura da claridade que (tinha) para dizer"
"Sem título" (José Gil)
José Gil fala de imagem suicidária, a propósito da pintura de Mark Rothko. A extrema depuração das formas (apenas rectângulos de cor) deveriam conduzir a um impasse, e a verdade é que o pintor se suicidou, em 1970.
Nunca estive diante duma das suas telas, mas custa-me a imaginar poder sentir, mesmo aos 45 cm aconselhados pelo pintor, uma sugestão de transcendência envolvente.
A linguagem destes quadros aproxima-se muito da música minimalista e da repetição de notas e de ritmos.
Estamos perante uma comunicação derrogativa, no limiar, talvez, da santidade.
É o problema da monotonia. Alguns amam-na. Mas quem a compreende?
Em sintonia, a chuva cai melancolicamente.
sábado, 22 de setembro de 2012
A MÁQUINA DE COSTURA
Porbandar, Gujarat, India 1983 (Steve McCurry) |
O sorriso daquele velho que atravessa o rio só com a cabeça de fora e uma máquina de costura enferrujada é algo que faz tombar do seu pedestal todos os bustos nas galerias do nosso orgulho.
No transe, na passagem difícil, ele pensa apenas naquele momento de equilíbrio e de cumplicidade.
Será um alfaiate salvando a sua ferramenta, ou vai fazer uns cobres com um pedaço de sucata?
Não sabemos. Só vemos que no seu extremo despojamento, a bem dizer, não lhe falta nada.
Não era Gandhi que queria aprender a fazer a barba sem espelho para ter menos uma coisa de que depender?
sexta-feira, 21 de setembro de 2012
MOINHOS E GIGANTES
"- Cala-te, amigo Sancho - respondeu Dom Quixote - que as coisas da guerra estão sujeitas mais do que as outras a contínua mudança: tanto mais, como eu penso, e é verdade, que aquele sábio Frestón que me roubou o aposento e os livros transformou estes gigantes em moinhos, para me tirar a glória de vencê-los: tal é a inimizade que me tem; mas ao fim e ao cabo hão-de poder pouco as suas artes maléficas contra a bondade da minha espada."
Dom Quixote (Miguel Cervantes)
A prodigiosa actualidade do "Don Quijote", da ideia transfiguradora do real que percorre as suas páginas, ultrapassa a própria literatura.
O que sentimos ao ler as peripécias da loucura do cavaleiro andante não é a crítica de costumes ou literária, a retórica do século XVI ou os maneirismos da língua, é a falta de consistência daquilo a que chamamos a realidade. Como se o discurso demente tivesse poder igual ao da razão para se impor aos outros e de moldar a sua vida (nem que fosse através de estratégias de dissimulação e de tácticas de "entrar no jogo" da loucura para obter certos fins ou desviar de certas consequências).
Nem o encerramento preserva dessa influência, porque também a razão se encerra numa polícia do espírito e na castração.
Assistido pela química, o moderno conceito de psicose e de interpretação delirante, que são, muitas vezes, efeito colateral dum fármaco, permite-nos derrubar os muros e, como por encantamento, destruir a biblioteca do fidalgo, no aposento e na sua cabeça.
quinta-feira, 20 de setembro de 2012
OS ESOTÉRICOS
"Mas com o tempo, o seu deus adquiriu uma verdadeira
mania legislativa e na actualidade o corpo jurídico constitui um imbróglio tão
inextricável e minucioso que é impossível não incorrer em falta
continuamente."
("A assombrosa viagem de Pomponio Flato" de
Eduardo Mendoza)
Cada malha acrescentada à rede nos tolhe mais os
movimentos porque a ideia de tudo regular cria um mundo artificialmente
fechado, em nome da segurança (ou dum saber de previsão).
Kafka foi o profeta desse mundo. A personagem de K, no
"Processo" está à partida condenada pelo labirinto das leis. Nas mãos
dos 'intérpretes', de advogados como Hastler, resta-lhe seguir as práticas
consagradas e os conselhos dessa burocracia para para obter o adiamento da pena,
na esperança vã dum 'esclarecimento'.
A sociedade descrita no romance foi devorada pelo poder. A inextricabilidade
legal que justifica a existência duma casta de intérpretes autorizados define um sistema de
poder aparentado à teocracia do Antigo Egipto, sendo os sacerdotes os guardiãos
(e beneficiários, em termos de poder) da doutrina esotérica.
O verdadeiro poder não se funda numa função ( a da
segurança, por exemplo), mas num alegado saber que só a especialização (nas
coisas de Céu, por exemplo) e a consagração permitem alcançar.
Mesmo o mais poderoso dos 'caudillos' invoca Deus e a sua
missão.
É claro que nos tempos que correm a parábola que merecia
um novo Kafka não trataria de advogados, mas de economistas, que são os
herdeiros, longínquos embora, do esoterismo egípcio.
quarta-feira, 19 de setembro de 2012
PIERRE ENTRE OS MAÇÕES
"A cumplicidade iniciática refere-se a um saber, mas
também a um delito."
(Roberto Calasso)
Um saber que é preciso proteger da devassa, nem é preciso
dizer. Todas as sociedades místico-religiosas se desenvolvem em volta desse
núcleo, desse vazio (como dizia Barthes no "Império dos
Signos", a propósito do palácio do imperador, em Tóquio).
A outra peça do díptico é que, e dando razão a Freud,
nada mantém o centro do poder tão unido como a consciência da culpa (um outro
tipo de 'saber' naturalmente protegido). Só o crime colectivo e o sacrifício do
'cordeiro' selam a gravidade do começo, ao mesmo tempo que estabelecem a
igualdade 'não-natural' dos iniciados.
Pierre Bezuhov, em "Guerra e Paz", ao tentar a
via maçónica, não pôde deixar de se aperceber da vacuidade dos símbolos que,
por assim dizer, nasceram de necessidades intelectuais e sociais unicamente
'racionais'.
terça-feira, 18 de setembro de 2012
A AMIBA E A TROIKA
http://aventadores.files.wordpress.com/2012/09/troika.jpg |
"Qual é a diferença entre a amiba e Einstein?
Resposta: a amiba é eliminada quando 'comete' erros. Se for consciente terá
medo dos erros. Einstein 'procura' erros. Consegue fazê-lo porque a sua teoria
não é parte de si próprio, mas um objecto que pode conscientemente investigar e
criticar. Deve este facto à linguagem 'especificamente' humana, e em particular
à filha desta, a escrita humana."
(Karl Popper)
O 'privilégio' de Einstein, como cientista, de não ter de
fazer experiências arriscadas sobre si mesmo, pagando com o próprio corpo, por
assim dizer, permitiu o incrível desenvolvimento da ciência e das suas
aplicações.
Mas esse 'privilégio', de facto, não se limita à ciência
e aos cientistas, nem de perto nem de longe.
Em relação aos países que se viram na necessidade de
firmar acordos com a chamada troika, nada mais revelador desse
privilégio do que o facto do programa da troika para Portugal ter falhado tão clamorosamente, apesar de ter sido seguido à risca, 'and beyond', sem ter tido quaisquer consequências para aquelas entidades.
A experiência in 'corpore vili' foi levada a cabo com
perfeita 'distância' teórica da parte dos 'aprendizes de feiticeiro', e foram os países 'ajudados' que neste cenário representaram a amiba da imagem de Popper.
O mesmo se passa, e ainda com maior escândalo, a nível do
poder financeiro que desencadeou a tormenta e não só não pagou pelos seus
'erros' (na verdade pela sua falta de ética), mas continua a influenciar de
perto os centros de decisão política e a receber os competentes bónus milionários.
Moral da história, uma certa impunidade pode ser uma
condição do progresso científico, mas não há dúvida que a verdadeira impunidade
é a do poder, qualquer que ele seja.
segunda-feira, 17 de setembro de 2012
O BOTÃO
Esta volatilidade das massas que as faz juntarem-se quase
instantâneamente através das redes sociais, sem os habituais prazos de
convocatória, sem a preparação das manifestações organizadas, é já a
'democracia electrónica'?
É pelo menos o sonho de qualquer demagogo (se a internet
não fosse, aparentemente, um meio hostil aos efeitos do carisma
político). Podemos imaginar onde isso nos poderia levar o referendo
automático e em 'tempo real'.
A diferença em "How to murder your wife", o
filme de Richard Quine (1965), entre o 'ter ganas' de matar o cônjuge, que nunca se concretiza, por falta de oportunidade ou por causa das consequências legais, e o botão (o
mesmo da arma nuclear na ficção) que transforma a matéria do crime numa
abstracção mais rápida do que a velocidade da luz e que parece que não nos diz respeito, é
que esse botão é apenas, até agora, uma hipótese.
A verdade é que o governo (qualquer governo) é o
contrário dessa participação instantânea do 'povo-povo', como lhe chamou o
professor Marcelo.
A democracia representativa, por força dos desenvolvimentos tecnológicos, entre outros factores de ordem cultural, parece ter
chegado à hora da verdade. A natureza sobretudo simbólica do voto de 'quatro em
quatro anos' surge agora na sua simplicidade 'franciscana', de acordo, aliás, com
a crítica de Marx.
Mas a verdade é que ainda não se inventou a crença que o
vai substituir. Se a política democrática (que se julga a mais civilizada de todas)
consiste em tratar de soberano um povo que se tem de 'levar pelo cabresto', então a internet já passou a sua sentença.
Haveremos de chegar ao dia em que uma mentira tão
flagrante seja substituída pelo 'realismo' necessário, poupando a nossa
inteligência a uma ofensa tão gratuita.
domingo, 16 de setembro de 2012
PORTAS À GREGA
Os antigos gregos abriam a porta de suas casas para a rua, tendo frequentemente que avisar quem ia a passar, para não levar com o batente.
Aí está um costume que parece ir contra o bom senso, mas que talvez signifique que esses cidadãos de bom grado obtinham um espaço suplementar para a sua habitação, à custa do passeio público. O que, bem vistas as coisas, se quadra bem com o espírito de independência e individualista daquela nação.
Era um sistema de privatização intermitente da calçada. Tal como o "daimon" socrático, precursor da consciência moderna, era uma privatização do paganismo.
No entanto, talvez não se tenha ainda atingido na terra uma criação do espírito cívico como foi a democracia ateniense... ( o que injustamente a diminui aos nossos olhos é supor a existência da escravatura; mas é preciso ler o que Hanna Arendt escreveu sobre isso).
sábado, 15 de setembro de 2012
O RADIOSO VIRTUAL
José Gil |
"(...) a imagem virtual das novas tecnologias desfaz por toda a parte o efeito de sombra e de imaginário que traz à percepção o fechamento sobre si dos territórios existenciais. A extraordinária conexão de múltiplos campos heterogéneos que a imagem virtual induz, longe de "desmaterializar" ou "desrealizar" os objectos e os seres, torna-os mais reais porque actualiza o virtual que eles são. O real é o virtual."
José Gil ("Sem título")
A crise que a fotografia introduziu na pintura levou-a ao conceito. As figuras, a composição, o ritmo da formas, nada são sem uma ideia que torne a arte independente do mundo, deixando à natureza e ao modelo a função dum problema que suscita questões formais e poéticas, mas que já não é a verdade da pintura.
Esta situação não é alterada, parece-me, pela irrupção da imagem digital. Tudo se pode transformar em imagem, mas libertando também a arte visual das técnicas e dos suportes ligados à pintura a óleo.
A pintura vive um período post-mortem criado pelo mercado da arte. Mas os museus e o interior burguês mudarão de fisionomia quando os quase-objectos do virtual entrarem na cadeia de valor.
Teremos então estátuas e edifícios que não poderão ser tocados e sonhos que poderemos visitar como se fossem lugares. Tudo é cérebro.
sexta-feira, 14 de setembro de 2012
PSICOTRÓPICOS
de mais: ninguém consegue ser contemporâneo."
"Uma viagem à Índia" (Gonçalo M. Tavares)
É também uma questão de velocidades diferentes. Cada um obedecendo ao seu impulso perde os outros de vista (mas não é a 'pressa de chegar rumo à estrela polar' do poema de Gedeão).
Ser solidário ou não também tem a ver com a velocidade. O melhor exemplo é o automóvel. Esta prótese das nossas pernas e dos nossos pés que a roda tão bem simboliza coloca-nos no centro da falta de 'contemporaneidade'.
Com os psicotrópicos damos um passo sem retorno. Como no exemplo dos gémeos (para explicar um dos mais incríveis efeitos da teoria da relatividade), quando desembarcamos já não encontramos o tempo dos outros.
quinta-feira, 13 de setembro de 2012
O CAMPANÁRIO
Paul Verlaine |
Verlaine comparava a Torre Eiffel ao esqueleto duma torre
de campanário. Um século depois ela continua a ser o ex-libris incontestado da
cidade de Paris. Ultrapassada pela vertigem das novas construções, dos novos
materiais, do 'design' é ainda um símbolo ambicioso da modernidade, do impulso
para mais alto, como um foguetão que não chegou a partir, mas que guarda toda a
sua força de propulsão.
Uma das imagens da última guerra mundial mais conhecidas
é a de Hitler a torcer o pescoço para olhar para o alto da torre. O seu passeio
relâmpago pela 'Cidade-Luz', no torpor que se seguiu à violação, é a tomada de
posse do pequeno-burguês alcandorado aos fastos napoleónicos.
Naquele momento, a França na sua queda vivia dos símbolos
que desafiavam a gravidade. O bem mais precioso estava por terra e parecia que
ninguém ia levantá-lo do chão (Simone Weil). Mesmo o 'esqueleto dum campanário' é um ponto
alto que mima os gestos necessários.
quarta-feira, 12 de setembro de 2012
COMER A SOPINHA
O Berghof de Hitler |
"Hitler impõe aos seus convidados (no Berghof) que
acabem os pratos e proibe ao 'maître d'hotel' de os levantar se ficar alguma
comida nas gamelas."
("Femmes de dictateur", Diane Ducret)
Os piores instintos são compatíveis com uma moral
estrita, de mestre-escola. Em "The Wall", dos Pink Floyd (a melhor
banda de rock de sempre, disse alguém), as crianças só têm direito ao pudim se
forem obedientes. É preciso comer a sopinha.
Imagine-se o alívio, na casa de montanha de Adolf, quando
ele se levantava da mesa e, com isso, se podia fumar ou dizer disparates.
Quem tomar o homem pela caricatura que sugerem os seus
excessos monstruosos (mas são esses excessos que nos impedem de submeter os seus actos a um juízo 'humano' e nos
condenam à caricatura) não pode compreender a sua banalidade, ou a sua
'inquietante familiaridade'.
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