segunda-feira, 31 de dezembro de 2007
POLEMISTAS
sexta-feira, 28 de dezembro de 2007
UM CAVALO

"Guernica" de Pablo Picasso (pormenor)
Ao passar na rua Formosa, pelas traseiras do Coliseu, onde há uns anos via entrar os animais do circo, vejo um cavalo entre grades, sem espaço para se mover ou mudar de posição. Esquecido como uma máquina que se desliga, indo o dono à sua vida, sem pensar mais no caso.
Vem-me à ideia a cena com o cavalo chicoteado, em Turim, de que, dizem, foi protagonista Nietzsche, antes de perder a razão, abraçado ao pescoço do animal, numa manifestação de piedade para além do humano.
Em Auschwitz, havia uma tortura assim, mas pensada para o sub-humano: quatro presos de pé num buraco, uns colados aos outros, sem se poderem sentar.
quinta-feira, 20 de dezembro de 2007
quarta-feira, 19 de dezembro de 2007
OS POSSESSOS

Andrzej Wajda
Wajda realizou em 1988 um filme inspirado no romance de Doistoiewski "Os Demónios".
Os niilistas russos da última metade do século XIX são aqui retratados em toda a sua paixão iconoclasta e suicida, provocando, sabotando, assassinando, fiéis à divisa do "quanto pior, melhor".
Este grupo viajou pela Europa e trouxe a peste na bagagem, como Freud dizia ao levar a psicanálise ao novo continente.
O fosso entre o atraso das condições sociais do seu país e o que essa elite impaciente pôde testemunhar no estrangeiro era um verdadeiro abismo, em que algumas cabeças esquentadas se precipitaram, como a vara de porcos do evangelho, para a qual Jesus transportara o mal dum endemoninhado.
É esse o pensamento redentor do velho Verkhovenski que parece expressar a visão do romancista: o mal estrangeiro tem de ser concentrado nesses possessos do niilismo e nos defensores do progresso em geral, para que a Santa Rússia, enfim, purgada, seja salva.
Este mundo de loucos febris, amorais como algumas personagens de Gide, confia, no fundo num mecanismo histórico. Eles apressam a chegada do futuro, antes de outros darem a essa quimera uma outra eficácia.
Passaram do delíquio dos serões provincianos de Tchekov, sem esperança, mas resignados, directamente para a bomba.
segunda-feira, 17 de dezembro de 2007
A ATENÇÃO ENTRE PARÊNTESIS

Image of a gamelan
"Não nego que exista uma estética da repetição, que nas peças de concerto e nas danças permite variações sobre um fundo de ostinato. Mas a música de concerto é rara e tardia. A maior parte das músicas, e nomeadamente as músicas repetitivas, acompanham um outro acontecimento, uma ou várias outras acções: teatro, dança, ritual, preparação de ritual. Estas músicas não valem por si mesmas e não são feitas para serem "escutadas", mas para serem "entendidas" ( - entendues - nos dois sentidos do termo: audição e entendimento)."
"Images du monde et traitement du temps dans le gamelan" (Catherine Bassset)
A repetição, quando "demasiado escutada", com toda a atenção, gera impaciência num auditório ocidental, diz a autora mais adiante.
Talvez esta diferença em relação aos balineses explique outras "impaciências ocidentais", como, por exemplo, a que provocam a música e o teatro tradicionais do Japão.
Talvez que esse tempo e essas repetições de notas e de gestos não devam mais ser objecto da nossa atenção do que as paredes do templo em que nos recolhemos.
Mas o nosso modo "ético" de escutar a música concorre, cada vez mais, na cultura moderna, com a música ambiental, que nos rodeia apenas para impedir a entrada do silêncio.
domingo, 16 de dezembro de 2007
sexta-feira, 14 de dezembro de 2007
NO DENTISTA
quarta-feira, 12 de dezembro de 2007
domingo, 9 de dezembro de 2007
sábado, 8 de dezembro de 2007
TELEMASSA

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007
quinta-feira, 6 de dezembro de 2007
O MASOQUISMO

"O êxtase de Santa Teresa" (Bernini)
"O segundo dragão é a imputação de masoquismo (...). Temos de entender os seus esponsais de dor como etapas obrigatórias no caminho para "o Bem". E, uma vez mais, este é um tópico extremamente complexo. Mas o que é certo é que até os amigos íntimos de Weil ficaram chocados com a sua confessada inveja das agonias físicas de Cristo, com o seu desejo de emular a Paixão. Por muito que se enquadre numa tradição mística de maceração divina, um sentimento destes situa-se na linha de sombra do patológico."
"Paixão intacta" (George Steiner)
O masoquismo é uma acusação diabólica, pois pode converter a maior devoção e o sacrifício mais abnegado no seu contrário. Lançar o veneno da suspeita sob a intenção mais pura. Suspeita de quê? Da virtude não ser mais do que um meio para servir algo de inconfessável como o prazer do corpo na forma paradoxal duma dor física. Sabemos que a própria consciência da virtude lhe é funesta, mesmo se procura o bem, mas aqui o próprio bem está ao serviço da luxúria.
Com a arma do masoquismo, não há santuário que não se remodele em lupanar.
E, no entanto, quem pode olhar o êxtase da Santa Teresa de Bernini sem sentir a ambiguidade?
Mas deixemos as armas à entrada, no caso de Simone.
Por que é que o excesso e a loucura não seriam expressões do amor autêntico?
quarta-feira, 5 de dezembro de 2007
OS DRAGÕES DE SIMONE

a celebration of Simone Weil's
George Steiner, em "Paixão intacta", refere-se à tese de H.L. Finch de que há quatro dragões que "obstruem o caminho que conduz a uma avaliação correcta" de Simone Weil.
"O primeiro é o da anorexia, tal como esta pode ser encarada pela psicologia comum."
Simone deixou-se morrer de inanição, num hospital do Kent, aos 34 anos de idade.
Supostamente, por compaixão, por querer compartilhar os sacrifícios alimentares da França ocupada. Steiner considera "mais ou menos" melodramática esta atitude.
Mas a verdade é que esta "paixão" não se compreende sem o modo, aos olhos do comum, excessivo de viver de acordo com a sua teologia.
O carácter sacrificial da sua proposta de participar na frente de guerra como enfermeira e, sobretudo, o grau da sua preocupação com os problemas sociais ou os duma colónia tão distante como a Indochina tinha a pungência duma dor física que aos outros podia parecer teatral (isto era antes da revolução mediática. Como suportaria a sua imaginação compassiva, por exemplo, as imagens da televisão?).
Num outro extremo, temos um exemplo, em Proust, duma preocupação impotente e um tanto ridícula no seu exagero, quando a duquesa de Guermantes confia a alguém, com toda a seriedade, que a China a inquieta.
Enfim, poderemos pôr em causa a autenticidade desta paixão e aquilo que hoje se chama de honestidade intelectual levada à sua quase impossível perfeição?
Voltarei aos outros dragões.
ALGURES, COPÉRNICO

Retrato de Copérnico por Jan Matejko
"Camille - Digo-vos eu, se não recebem tudo sob a forma de cópias inábeis etiquetadas em teatros, concertos e exposições de pintura, eles não têm olhos nem ouvidos. Se alguém talha uma marioneta pendurada na ponta de um fio que a faz gesticular e cujas articulações rangem a cada passo em pentâmetros iâmbicos, que personagem, que lógica!"
"La mort de Danton" (Georg Büchner)
O tom do discurso denuncia a paixão do orador. Se nos move, é porque ele parece abarcar o assunto no laço da sua voz e das suas palavras, como se o tivesse sob o olhar flamejante e o pudesse varar de um lado ao outro com os raios da sua inteligência.
Um nome é melhor do que um conceito e uma "dramatis persona" melhor do que um simples nome.
A certa altura, falando do sistema político (já em si uma audaciosa simplificação), põe-no em cena como uma personagem, frente a outras do drama. Empresta-lhe as intenções e as palavras, e como tem a peça na cabeça sabe o que se vai passar. Temos a sensação, ao ouvi-lo, de que não estamos mais no tempo real, mas no da tragédia.
A sua ficção faz todo o sentido, como outra faria. O nosso orador não é diferente dos outros. É com uma ficção que interpretamos a história e a política. Sem excepção. O mito é o princípio da ciência.
Mas depois das lições do século XX, persistir na mesma ficção é como se insistíssemos na versão ptolomaica quando já um certo monge polaco escrevia "De Revolutionibus Orbium Coelestium".
terça-feira, 4 de dezembro de 2007
OS ALCATRUZES DA NORA

Uma Roda da Fortuna futurista
(http://www.hgf-synthesizer.de/se/X-WoF/Wheel-Of-Fortune.jpg)
A consciência (essa invenção dos Judeus, segundo Hitler) é cismática e criadora de diferenças tanto como fazedora de concórdia e de unidade.
O mundo, tornado mais pequeno pela comunicação instantânea, é um espectáculo difícil de suportar para os filhos da Revolução Francesa (mesmo se têm tendência para reduzir o tríptico célebre à igualdade e à fraternidade).
No entanto, também os privilégios se encontram mais expostos e se tornaram mais vulneráveis.
Se perante a impotência de actualizar as ideias de uns e a de se justificarem com um mundo mais justo de outros, um consenso for possível, deverá ter por base uma nova versão da famosa teoria da "igualdade de oportunidades". Na realidade, muito mais próxima do antigo conceito de Fortuna. Desde que os factores que decidem a desigualdade possam ser separados da influência política, tenderão a assemelhar-se a uma espécie de fatalidade objectiva.
É por isso que a filosofia e a separação de todas as formas de religião da política se tornaram o caminho da paz e da sobrevivência.
segunda-feira, 3 de dezembro de 2007
FIDELIDADE

"Melancolia” de Edward Munch
"As palavras não mudam tanto de significado, em séculos, como os nomes para nós no espaço de alguns anos. A nossa memória e o nosso coração não são suficientemente grandes para poderem ser fiéis. Não temos espaço bastante, no nosso pensamento actual, para aí conservar os mortos ao lado dos vivos."
"Le côté de Guermantes" (Marcel Proust)
Questão de memória, questão de espaço.
Como o nosso convívio com as máquinas "inteligentes" nos permite compreender esse limite!
O temperamento melancólico (segundo a ordem clássica dos quatro temperamentos), propenso a fechar-se sobre si mesmo e a ver tudo negro, é também o mais fiel.
É que nele a fidelidade é possível à custa das novas sensações e dos novos afectos.
Neste caso, os mortos podem expulsar os vivos, por não haver espaço para todos.
SIMONE E OS CÍNICOS

Diogenes, Jean-Léon Gérôme
"Segundo consta, Platão disse de Diógenes, o Cínico: "Ele é a versão enlouquecida de Sócrates." Nesta observação há tanto de homenagem inquietante como de escárnio. Como podemos evitar que esta descrição nos venha à lembrança quando pensamos em Simone Weil?"
"Paixão intacta" (George Steiner)
Diógenes queria menos reformar o mundo com o seu exemplo do que poder troçar dele e confrontá-lo com as suas próprias contradições.
Há aqui, como é proverbial, um orgulho feroz e uma vaidade paradoxal ("a vaidade transparece através dos buracos do teu manto.").
Se Platão fala em loucura neste caso é porque o que está implícito na "pedagogia" de Diógenes nunca poderia obter o acordo dos outros, por ser intrinsecamente anti-social.
A loucura (ou a santidade) de Simone Weil, aquilo que Steiner descreve como a patologia presente na sua vida e nas suas ideias, como a inveja da crucificação e o desejo de obedecer como a matéria, parece também destruir todas as pontes para o outro e enfermar de um luciferino orgulho.
Mas com isto não se tocou ainda no que constitui a grandeza de Simone Weil, nem se explicou como é que a sua "loucura", que tanto a religião, como a sociedade só poderiam condenar, assumiu tantas vezes a forma da preocupação social (desde que não se tratasse do seu próprio povo, o povo judeu, acrescentaria Steiner).
domingo, 2 de dezembro de 2007
CONTRADIÇÕES MILITANTES

http://www.ulm.edu/studentsuccess/career
Um amigo brusco e que quer demasiado fazer-se amar contorce-se na eterna imprecação contra os males da empresa. Mas agora houve uma mão-cheia de promoções e ambos fomos contemplados. Bem vejo por isso na sua irritação o desejo de mostrar que permanece o mesmo, apesar dos novos galões. Com o chefe que lhe deu a notícia, sentiu-se obrigado a dizer que era muito crítico em relação ao que se estava a passar, ao que o outro respondeu que não tinha o exclusivo.
Esta capacidade que tem o poder para desarmar o militante distribuindo-lhe uma parcela que ele não sabe recusar é prova de inteligência e não de força. O delegado sindical é assim aspirado para o mundo dos gabinetes, e mesmo que queira conservar o seu anorak, tem de aprender a cortesia e a pensar como os homens de gravata. As ideias perdem sempre com a mistura, e o militante divide-se dentro de si mesmo. Acontece também, mas raras vezes, que o poder não satisfaça o homem de ideal e se veja então a mesma pessoa presidir ao conselho dos chefes e conspirar na célula do partido. São estes exemplos, de resto, que escondem a ambição do militante e levam a que perante o primeiro degrau da escadaria triunfal, o delegado diga sim.
E eu não disse que não. Tomei laconicamente como um dever a cerimónia da investidura. O mal-estar de ambos é porém uma crise da adolescência. É mais fácil acusar o poder de discriminação e de arbitrário, quando somos o exemplo vivo da incomunicabilidade com a hierarquia. É como gozar duma renda de situação. Sem palavras nem actos, o juízo está feito pelo simples contraste. Tudo isso muda, e quase sem custo, se o sistema nos oferece a paz e a tolerância, apesar de havermos quebrado tanta loiça e vociferado tanto. E se pensarmos que a ordem e a organização são coisas indispensáveis a qualquer sociedade, se não confundirmos a empresa com o poder e os títulos de propriedade, não podemos recusar um acréscimo de responsabilidades. Menos ainda o podemos se criticámos esse poder no passado e acusámos as pessoas de não cumprirem com o seu dever.
No fundo, receamos sempre não estar à altura da nossa crítica e falhar onde os outros falharam. A honestidade exige pois que se aceite o cargo, por muito que agradasse mais ao filósofo ser razão e juiz apenas. Para isso era preciso não entrar no jogo da política. O delegado sindical só será escolhido agora se fizer melhor do que os outros, porque não está confinado apenas à fala rebelde.
Quanto mais a necessidade cinge o homem, mais pura é a liberdade. Mas também mais difícil é agradar, e isso é bom para o espírito. O meu amigo prefere ler os factos pela grade da esquerda e da direita. E como não pode deixar de acontecer a sua cólera é toda política. O sistema explica tudo. É uma palavra que substitui a ideia da totalidade e nesse sentido, podia ainda ser útil. Mas quando se reduz o sistema a leis da produção manuseáveis pela sociedade ou pela vanguarda, pensa-se que é possível mudar a totalidade.
Daí que estas promoções selvagens sejam fruto do sistema, que nos indignem maximamente, mas que se desculpem os homens e se esqueçam as paixões até à Revolução.