sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

NO DENTISTA



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A mão do velho médico tirou-me o siso difícil. Eu receava que essa mão tremesse e que ele não estivesse à altura do que prometera há cinco anos. Foi quando me disse, depois de ver a chapa radiográfica, que me ia custar um bocado e que não era qualquer um que mo tirava. Já tinha o alicate suspenso, mas eu decidi adiar a operação até quando o dente me doesse de verdade. A rapidez com que tudo se ia fazer devia-me ter alertado, porém a imaginação podia mais e esse siso foi durante uns anos uma espécie de pequena morte. Não que alguma vez me atacasse uma dor forte – era um grande molar pacífico que nascera deitado -, a profecia é que era a verdadeira dor.

Lembrei-lhe essas palavras, e o velho reagiu como que ofendido: - eu só lhe podia ter dito que talvez não pudesse abrir a boca nos primeiros dias! Mais nada… Mas a outra citação foi grata ao prático reformado. Via entrar no seu consultório, de resto sem mãos a medir, o nome que fizera nos seus muitos anos ao serviço da Caixa. Não lhe era indiferente resgatar-se daquele medo que me fizera. Devia saber que nesses tempos tinha reputação de homem brusco e sem maneiras, mas de excelente dentista. Bem vistas as coisas, esta é uma característica operária, e a especialidade é talvez a única que não precise de persuadir, segundo a forte ideia de Chartier. A psicologia acaba nestas presas de marfim que são um objecto distinto, quase todo exterior e que não muda conforme se observa.

Bem podia desprezar a cerimónia e ir direito ao dente. Mas raramente o homem foge à tentação de experimentar a sua força, e eu esperava naquela cadeira uma sentença. O operário não resistiu a fazer-me um pouco de medo e a entrar no domínio do padre e do médico vulgar. Eis por que lhe faço subir o sangue. Ao lembrar-lhe uma fraqueza, é o passado que julgo sem saber. E este velho tem qualquer coisa de romano que não suporta florilégios no seu epitáfio. Ah! como é doce viver na memória dos homens! Depurar-se a vida embora do que fazia o seu sabor, para ficar só o mármore e a ideia.

Há pessoas que guardam os dentes, e aquele siso mal tocado pela cárie dava um bom amuleto. Mas quando ele mo mostrou, ainda no alicate: - olhe que matulão! – pensava no poder duma simples frase e da imaginação sempre acordada pela língua e o palito. E, por outro lado, em como a anestesia me tinha deixado sem queixo por umas horas, o que reduzia a dor a um mau sonho. Vi como o médico se aplicou e torceu. Senti bater no fundo da maxila, mas foi apenas um estremeção, logo ampliado pelo pensamento. E compreendo por que razão me mandou o velho abrir os olhos. Ele leu, na declaração teatral que lhe fiz ao chegar e sobretudo no meu aspecto, o temperamento nervoso. Ter os olhos fechados era imaginar sem remédio. Enquanto que a luz da janela e o movimento das mãos me podiam chamar à realidade. Mas também ele se enganou pelo meu exterior, e o pânico foi dum segundo imediatamente vencido. Alguma coisa partia no meu corpo e por um momento fiquei sem saber o que se ia passar a seguir. Foi essa espera quase metafísica que me alarmou. Assim deve ser a última consciência.

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