terça-feira, 27 de junho de 2017

NINGUÉM É PERFEITO







"Quanto mais quente melhor" (1959-Billy Wilder)




É preciso sabê-la morta e saber como morreu para sentir a verdade patética de Marilyn. E onde é que esse corpo parece mais “simpático” do que em “Some like it hot”? Com menos força de viver porque existindo em pleno imaginário. É o desejo do animal da câmara escura que o faz ser. As suas formas têm a substância do sonho, não é possível degradá-las pela posse, nem por um destino humano. Há algo de incompleto em todos os mitos que recupera o espaço em branco e faz símbolo do simples continente.

A morte prematura é potencialmente criadora do divino. Mas a nossa época reúne à volta da pira sacrificial os que odeiam todos os cultos. Sem a ética do religioso, todos nos convertemos em instigadores do suicídio. Fatalidade bem humana a que roubou a esta mulher o desejo de viver, como se tivesse compreendido que é a morte a fonte de valor do mito. Marilyn Monroe tem tudo da mulher excepto a realidade, e a expressão que devolve ao olhar que procura a plástica e a hipérbole sexual é a da criança que se deixa desejar sem compreender o desejo do adulto. Há uma coqueteria infantil em todos os seus movimentos conscientes. A forma cheia e lisa do símbolo oferece-se permanentemente à nossa admiração, mas acompanhada da reivindicação absoluta do órfão. Não é possível o olhar desinteressado e sem culpa.

O erotismo é solicitado pela simpatia histórica com a vítima do seu e do nosso cinema. No iate usurpado por Tony Curtis, MM faz a única cena de amor que se pode imaginar para o seu mito. Trocando com o parceiro a sua situação infantil, vêmo-la no trabalho incestuoso da iniciação. E se há uma espantosa perversidade em fazer funcionar o potencial erótico da figura directamente como recurso maternal, a astúcia imaginada para vencer a paradoxal frigidez e o puritanismo inverosímil mostra que a força deste erotismo se esgota no gesto de significar.

O acesso a esta pletórica vénus é defendido pelo olhar da medusa. Assim Billy Wilder deixa o desejo nu perante si mesmo, num genial comentário freudiano com os meios do melhor cinema. Não podemos permanecer na situação do voyeur insatisfeito. Nenhum strip-tease interessa, porque desde o início a nudez é palavra e intenção de seduzir. Eis por que o progresso deste erotismo é sempre desmistificador.

E encontrarem-se no fim de contas o ídolo e o adorador no mesmo impasse da irrealidade sexual é o que permite a MM ser um mito que tem a sua própria crítica.

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