segunda-feira, 27 de julho de 2015

ARGOS, O NAVIO




"A obstinação estéril do cérebro"! Nenhuma fórmula poderia definir melhor Ulrich, o porta-voz de Musil. Toda a tragédia desta personagem está na sua enorme inteligência crítica. Mas para lá de um certo limite, tais dons interditam a aquisição de qualidades de conservação, daquelas que vos foram dadas. Uma qualidade é sempre uma escolha da alma acoplada a uma disposição do carácter. Ela induz um desequilíbrio da personalidade. Ulrich está na crista da neutralidade intransigente, demasiado inteligente para alguma vez escolher, demasiado lúcido para não equilibrar exactamente o pró e o contra. Ulrich é exactamente igual a zero."
(Jean-Pierre Maurel)

É a inteligência que abusa da situação que lhe foi dada, propondo-se ditar leis ao mundo por sua própria conta, como se fizesse jus àquela espécie de lei formulada por Simone Weil de que a força não pode deixar de explorar os seus limites, e só não vai até ao fim de si mesma, por 'milagre' ou manifestação da 'graça'?

Ou tendo perdido pelo caminho a 'divina proporção' que nos salvaguarda das 'obstinações do cérebro', só a inteligência nos pode ajudar a reconstituir a unidade perdida à custa de um desperdício humano como nunca se viu?

Não podemos regressar a nenhum passado 'ideal', a nenhuma bifurcação onde, sem que tivessemos consciência disso, se tenha decidido o nosso destino. O mito do homem novo poderá ter uma segunda oportunidade. Será feito das peças dispersas pela nossa errância, como outro Argus, mas sem a liga certa.

O 'homem igual a zero' escalpelizado por Musil é o homem que perdeu há muito tempo o segredo dessa liga.




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