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(José Ames) |
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"O rapto de Proserpina" (Padovanino) |
"(...) só quando a ciência, a moral e a arte forem em cada momento especializadas 'numa' exigência de validade, seguirem a sua lógica 'própria' a cada momento e forem purificadas de toda a escória cosmológica, teológica e cultural só então pode instalar-se a suspeita de que a autonomia da validade, reivindicada por uma teoria, seja ela empírica ou normativa, é aparência, porque se introduziram furtivamente nos seus poros interesses e exigências de poder dissimulados."
"La Technique et la Science comme Idéologie" (Jürgen Habermas)
Isto quer dizer que nos 'convém', enquanto sociedade humana e poder que a autonomia da validade de uma teoria não esteja sujeita à discussão, pelo menos enquanto não houver 'provas' em contrário, mas provas, tacitamente, concordes com o 'epistema', diria Foucault.
Um dito célebre lembra-nos que só nos podemos colocar os problemas que estamos em condições de resolver. O não problemático está sempre abaixo ou acima do nosso entendimento. A espécie desenvolveu a ferramenta da razão para se poder adaptar a um mundo em constante transformação ("tudo se transforma"). Deve ser uma necessidade do 'homo sapiens sapiens', afim da própria linguagem, postular uma origem e uma criação.
Dum ponto de vista 'objectivo', parece que a 'problemática' científica dispensou a 'hipótese de Deus' para sair das suas contradições. Mas a questão levantada por Habermas diz-nos que isso foi feito à custa de um ocultamento que tem tudo a ver com a verdade filosófica.
De que precisamos para não sofrermos o choque da falta de validade geral das nossas provas? De especialização e mais especialização. A ciência, filha da religião e da filosofia, tem de chegar para tudo, enquanto a filosofia estiver debaixo de terra, como Proserpina.
Falemos do filme de João Botelho. Sem os desequilíbrios do seu recente trabalho sobre o "Livro do Desassossego", obra sobre a qual não é possível um consenso, talvez por não ser 'cinematizável', a obra-prima de Eça tem uma história e um manancial de diálogos que facilitam o trabalho do guionista. Sei que isso não chega e que a adaptação não pode ser um simples resumo, porque o cinema tem a sua própria linguagem. Aqui, o filme é inteiramente conseguido, com o tempo certo e a dramaturgia o mais eficaz possível. Não é pouco que tenha conseguido dar-nos uma ideia da riqueza das personagens secundárias do romance. Tenho um só reparo que são os cenários e um ponto ou outro de abandono do registo 'clássico' deveras irritantes. Quem tenha visto "A Inglesa e o Duque" com certeza que aderiu à recriação dos exteriores com gravuras da época. Não temos a impressão de um cenário, porque o seu 'classicismo' depressa se torna num ambiente 'histórico'. A tentativa de seguir o modelo de Rohmer falha quase completamente no filme de João Botelho porque os cenários parecem reproduzir, arbitrariamente, uma escola de pintura da época (no caso, o impressionismo) que destoa do estilo da filmagem de um modo quase agressivo. Até uma simples sebe ou um renque de árvores têm de passar por esta 'desfocagem' e, na verdade, por este anacronismo. Não se trata, como se vê por estes exemplos, de 'economia', mas de uma aposta, felizmente fracassada (graças à excelência dos actores) de 'distanciação' - excluo, claro, a homenagem a Rohmer.
Insisto nesta pecha de um trabalho, em quase tudo o resto, tão meritório que, como se costuma dizer, 'reconciliou o público com o nosso cinema'.